segunda-feira, 31 de março de 2014

Ousar Viver


“Se a meta principal de um capitão fosse conservar seu barco, ele o conservaria no porto para sempre.” (São Tomás de Aquino)

            Que desperdício ter um barco para sempre ancorado ao porto, sem que ele jamais pudesse singrar os mares e vir a ser o que foi feito para ser. Esse hipotético barco parado seria empobrecido em sua condição de barco. Agora, pena mesmo é que muitas pessoas se portam desta maneira. Em vez de viver ficam paradas e acham que estão se protegendo.
            Obviamente quando um barco é lançado ao alto mar pode encontrar incontáveis perigos. Pode até mesmo nem mais retornar e ter um fim trágico. No entanto assim é a vida. Um barco foi feito para se aventurar, com todo o cuidado e vigilância, é claro, mas mesmo assim foi feito para estar em locomoção e não ficar parado. Assim como os barcos somos nós. Também fomos feitos para viver, só que muitos se esquecem disso e acabam apenas por sobreviver e se esquecem de que se ousassem viver a vida poderia ser muito melhor.
          Estar vivo é uma grande aventura para quem se permitir. Inúmeros perigos podem surgir e certamente variados problemas ocorrerão e que exigirão toda a nossa atenção e pensamento. Viver significa singrar esse mar que é a vida e se colocar disponível até para o sofrimento. Entretanto, não é tudo só perigo. Há também muitos ganhos nessa jornada que são indiscutivelmente sem preço e que nos tornam melhores e mais sábios. Viver bem tem a ver com ganhar experiências e se deixar mudar por elas. Nada pior do que uma pessoa que passa pelos anos sem jamais se deixar tocar pela vida e aprender com ela.
            Dá medo lançar-se à vida, mas é necessário. Mil vezes mais benéfico é enfrentar as tempestades no meio do caminho, as turbulências que nos pegam de surpresa, do que ficar em uma pseudo-segurança no porto. Quem ousar sair pode chegar a lugares novos e conhecer ares diferentes. Ousar uma jornada é uma experiência transformadora e é isso que no fundo alimenta a alma. Alguém conhece jornada mais interessante que a própria vida?

sexta-feira, 28 de março de 2014

Pergunta de Leitora - Aprisionada


Tenho 22 anos e nunca namorei e na verdade nem beijei ainda. Me acho feia, acima do peso e sem nenhuma coisa interessante. Tenho uma prima que tem a mesma idade e ela é linda. Tem tudo o que ela quer e a vida dela deve ser maravilhosa. Fico acabada quando vejo que há tantas diferenças entre nós duas. Por que ela tem que ter tanta mais vantagem do que eu? Ele tem mais beleza, mais dinheiro, mais tudo e eu nada. Fico tomada pela raiva. Como posso viver nessas condições? Minha vida já começou errada e sinto que nada de bom pode me acontecer. Será que posso ter esperança de uma vida melhor?

            A comparação empobrece a sua vida e a imagem que você pode ter de você mesma. Que bem há de vir da comparação? Evidentemente nenhum, mas mesmo assim você se prende a ela. Quando parar de se comparar e puder se olhar de fato sua vida poderá mudar.
            Pode até ser que sua prima tenha mais beleza do que você e de que tenha condições melhores. Quem disse que a vida é justa e dá condições iguais para todos? Entretanto, ficar comparando as condições dos outros não ajudará a melhorar as suas. Para melhorar as suas condições é preciso que você desenvolva aceitação para com a sua realidade.
            Aceitar a realidade te permitirá trabalhar com você mesma e deixar os outros de lado. Mesmo que você se ache feia e acima do peso você, com certeza, pode fazer alguma coisa a respeito. Em vez de se lamentar e olhar para o que não lhe foi dado, pode melhorar as suas condições. E mesmo que não vire nenhuma beldade, não tem importância porque o que vai importar é a vida que você pode construir para você. Se você basear a sua felicidade apenas nos atributos físicos e externos da sua identidade você fica dependente, enquanto se você construir uma identidade poderá se fortalecer. E identidade, ao contrário da beleza física, não tem prazo de validade.
            Neste momento você prioriza mais a idéia que você tem do outro do que em desenvolver a sua potencialidade. Valoriza a ilusão e não a realidade e com isso se deprime. Falta-lhe descobrir porque age assim. Ao trazer um significado para a sua atitude de valorizar o outro e não a sua realidade poderá encontrar uma maneira de se libertar e viver consigo própria mais prazerosamente. Você só poderá viver com qualidade se você conseguir entrar em um acordo com você mesma, se você conseguir se sentir confortável na sua própria presença e não mais lamentar a sua condição.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Ansiedade


            A ansiedade é um estado de mente terrível. Quem a sente e todos em menor ou maior grau a sentem sabe bem como ela é extremamente desestabilizadora. Tira a paz e a tranquilidade e deixa no lugar uma sensação de se estar quebrado, um gosto insuportável, um verdadeiro buraco negro que tudo suga de bom a sua volta sem deixar nada. A ansiedade existe, é um fato, e nada podemos fazer para evitar que ela continue a existir, mas entre senti-la e viver constantemente com ela há um abismo que faz toda a diferença. Viver, assiduamente, oprimido pela ansiedade pode ser a experiência mais aterradora que alguém pode ter. Então, saber lidar com a ansiedade que se sente é mais do que importante, é vital.
            Pode ser por um emprego que está em risco, por um relacionamento que está em jogo, pelo dinheiro que se vai indo e que demora para voltar, pela saúde que não anda bem, pelo outro que tanto gostamos ou por qualquer outra razão, a ansiedade tem várias formas e todas nos levam a temer o futuro e o que ele nos reserva. Ela liga um sinal de alarme interno que vislumbra sempre os piores cenários possíveis e as consequências mais nefastas. Entregar-se às fantasias que a ansiedade desperta já é perder porque nestas fantasias não há a menor possibilidade de final feliz e tudo já fica pré-definido. Viver em ansiedade é a pior prisão que alguém poderia pisar.
            Como então lidar com esse mal? Como se preservar de algo que nos pega tão intensamente e que só nos leva a imaginar o pior? O grande erro é que as pessoas quando tomadas por estados de mente dolorosos têm a tendência de se livrarem deles o mais rápido possível como se o que sentíssemos fosse um pedaço velho de papel que pudesse ser facilmente amassado e jogado no cesto de lixo. Quem dera fosse fácil assim! Porém, o que sentimos não pode ser descartado desta forma, até mesmo porque sentimentos não têm como ser jogado fora. Eles podem ser transformados.
            Se não podemos chutar a ansiedade para longe fazemos o que com ela? Só há uma possibilidade, mas esta exige coragem e resignação, qualidades que andam em falta. Para com a ansiedade só podemos aceita-la. Isso mesmo. Aceitamos a sua presença assim como somos obrigados a aceitar uma tempestade. Não podemos controlar o tempo e quando nuvens carregadas resolvem despejar sua fúria sobre nós só nos resta curvar e aceitar até que passe. E por pior que seja uma tempestade ela sempre passa. Com a ansiedade é a mesma coisa. Ela também passa mesmo que a sintamos que ela seja eterna.
            O sentimento de ansiedade sempre fará parte da vida de qualquer pessoa. É uma realidade que não mudamos. Agora, o que podemos fazer em relação a isso é evitar que ela permaneça conosco além da conta e também não acreditar que seus estragos possam ser maiores do que nossa capacidade de reconstrução. O pensador chinês da antiguidade Confúcio dizia que impedir que os pássaros da aflição sobrevoem sobre nossas cabeças não temos como evitar, mas que eles construam ninhos sobre elas, isso sim, temos como evitar. A Dona Ansiedade será sempre uma visita indesejável, mas não precisamos convida-la a morar conosco. Cabe a cada um aprender a lidar com a ansiedade que sente a fim de evitar que ela se torne uma companheira para a vida.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Pergunta de Leitora - Em busca de luz


Fico sempre presa aos mesmos tipos de homens que jamais me dão valor. Já foram 5 namorados assim e não agüento mais. No começo tudo parece que vai bem e que ele vai ser o homem da minha vida mas depois sou traída e enganada. Quando isso acontece fico chorando e me achando uma mulher inferior. Acho que estou doente, acho que estou neurótica, não é assim que chama-se a doença na psicologia?  Como deixo de ser neurótica e como passo a ser mais saudável?

            A neurose foi primeiro usada como termo da medicina para se referir a algum “mal dos nervos”. Acreditava-se que existia uma explicação fisiológica, ou seja, orgânica para alguém adoecer neuroticamente, porém foi verificado que muito desse tipo de padecimento não possuía nenhuma fonte física. A origem desse mal se encontrava em outro lugar que a medicina desconhecia. Coube a Freud mudar essa situação.
            Com a criação da psicanálise Freud revelou a existência do inconsciente e a partir dessa descoberta a neurose ganhou novo sentido e abriu também a possibilidade de tratá-la com mais eficiência. Toda neurose, nas palavras de Freud, é um “sofrimento estéril” pois implica repetir-se, se angustiar com essa repetição e não conseguir se livrar dela. Em outras palavras, a pessoa fica presa e sua visão de mundo fica bastante limitada.
            Para se tratar uma neurose é necessário então entender o próprio inconsciente. Ao compreender as razões pelas quais uma pessoa é impelida a se repetir, um novo conhecimento pode surgir e permite que uma nova visão sobre um determinado problema ocorra. Quando é possível ter outros pontos de vista sobre o nosso sofrimento podemos criar recursos que propiciem outro desfecho que não a repetição. A psicanálise permite que alguém se recrie de uma maneira melhor.
            Você já tem o conhecimento de que se repete ao investir em homens que depois te enganam. Já sabe, então, que essa repetição é um sofrimento estéril. Agora resta dar um passo maior, que é procurar entender porque isso ocorre e se livrar dessa situação transformando-a em uma outra que lhe seja favorável. Vai conseguir isso ao aprender a se ouvir. Quem sabe já não está na hora de procurar um profissional que saiba te escutar para ajudá-la a se escutar? Enfim, já está na hora de buscar uma luz.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Venda de Ilusões


            Há um psicoterapeuta americano que anda propagando que consegue curar qualquer distúrbio psicológico em 28 dias. Lançou um livro que vem fazendo estrondoso sucesso e com isso consegue prestar um imenso desfavor às pessoas, pois o que ele faz é vender ilusões e isso é sempre prejudicial.
            Quem se coloca numa psicoterapia e seja ela de qual base for: comportamental, psicanálise, existencial, etc. entra num processo de autoconhecimento que vai trazendo à tona importante revelações que por sua vez vão pedindo por novas elaborações. Não há como fixar o tempo de uma psicoterapia já que a mente não funciona como algo que podemos estabelecer metas fixas. E mais, um distúrbio é indicativo de algo interno, um funcionamento que não anda bem e que exige uma reflexão.
            O que esse psicoterapeuta americano propõe é apenas um apagar incêndios, ou seja, focar no sintoma que tanto assusta um determinado indivíduo sem nem mais ligar para a causa que provocou aquele mesmo sintoma. Talvez uma analogia com a medicina possa ser esclarecedor. Se uma pessoa padece de terríveis dores de cabeça a solução não é ela viver tomando analgésico para o resto da vida. Isso é tapar o sol com a peneira e fingir que o problema está solucionado. O sintoma, nesse caso a dor de cabeça, possui uma causa e esta precisa ser investigada. Pode ser um problema dentário, em algum órgão ou indicativo de uma alergia entre muitas outras possibilidades. Enfim, o problema só pode ser solucionado quando a causa pode ser identificada e tratada. Com a psicoterapia é assim também.
            Quando trabalhamos com algo tão complexo quanto a mente é impossível saber de antemão tudo o que vai surgir e o que teremos, psicoterapeutas e pacientes, de lidar. Portanto é impossível estabelecer metas fixas. Esse terapeuta americano tem um problema que é terrível para alguém que se propõe a exercer a psicoterapia. Ele não suporta estar com seus pacientes. Num processo psicoterápico o sofrimento mental se faz presente e o terapeuta suportar estar com alguém que sofre é vital. A tendência é a gente sempre fugir daquilo que nos causa dor e espanto. Como os terapeutas também são gente eles também tentam evitar sentir qualquer desprazer e querer se livrar de seus pacientes é um meio de fazer isso. Um terapeuta que estabelece metas rígidas para seu trabalho impede que seu paciente se revele e tenha a possibilidade de descobrir quem realmente é. Com essas metas ilusórias o psicoterapeuta não dá espaço para que seu paciente saiba mais acerca de si.
           Não é fácil trabalhar com psicoterapia. Significa desenvolver uma capacidade eficiente para lidar com a frustração e nesse trabalho são muitas. Os próprios limites do psicoterapeuta que descobre que nem tudo pode e nem tudo resolve, estar com alguém que sofre e pede por ajuda muitas vezes de forma desesperada, nunca saber se o desejo do paciente por se cuidar vai ser forte o suficiente para mantê-lo no trabalho psicoterápico e ajuda-lo a progredir, etc. Não é a toa que muitos profissionais começam a trabalhar na clínica e depois de um tempo a abandonam por não suportarem tudo o que são obrigados a sentir e a lidar de uma maneira madura e eficaz. O psicoterapeuta americano sente medo de atender seus pacientes e resolveu isso estabelecendo o tempo que tem com eles. Assim se protege, falsamente, de lidar com coisas mais profundas e verdadeiras e que venham realmente a mexer tanto consigo quanto com quem atende. 

sexta-feira, 14 de março de 2014

Pergunta de Leitor - Solidão Afetiva


Sou homossexual assumido. Por muito tempo vivi escondido de todos e principalmente da família. Agora não faço mais segredos da minha condição e sou feliz assim. Aliás me revelar para o mundo foi bem mais fácil do que eu pensei que seria e fiquei bastante satisfeito ao não notar tanto preconceito ao meu redor. O que me entristece é que não tenho ninguém. É fácil “encontrar” sexo, principalmente com o auxilio da internet. Só que arrumar um companheiro é outra história. Me sinto só e as vezes fico em duvida se um dia vou poder encontrar alguém na minha vida. Queria entender por que é tão difícil assim arrumar alguém.

            Já se foi o tempo que a principal razão de angústia dos homossexuais se encontrava no medo de sofrer preconceito. Hoje, apesar de ainda haver muito preconceito e muita coisa precisar ser melhorada, há mais espaço e aceitação de modo que assumir ser homossexual não representa um problema de grandes proporções. A homossexualidade não mais é considerada perversão e nem doença e é vista como mais uma maneira de amar e ser amado. O que leva homossexuais aos divãs, atualmente, tem muito mais a ver com a solidão.
            A comunidade homossexual lutou muito para obter direitos e uma posição reconhecida na sociedade o que permitiu que a homofobia esteja hoje menos violenta do que já foi. No entanto, o homossexual, apesar de estar integrado socialmente sofre de solidão e no meio de tantas conquistas falta-lhe a segurança afetiva. É isso que mais caracteriza a homossexualidade hoje em dia: a solidão afetiva.
            Há um contraste na vida dessas pessoas que têm à disposição uma facilidade enorme para conseguir relações físicas e se satisfazer sexualmente e uma dificuldade para estabelecer relações que exigem ternura e amor de fato. Muitos se perdem entre a facilidade de um prazer rápido e fortuito e o trabalho de desenvolver relacionamentos afetivos de qualidade criando um grupo de solitários.
            Porém, não são só os homossexuais que se encontram nessa situação, mas todo o gênero humano porque estabelecer relações afetivas e ternas exige experiência e tempo. É preciso errar para conseguir uma hora acertar. É necessário persistir para não cair na amargura e na descrença do amor. O amor é direito de todos e não faz distinção entre gêneros e orientações sexuais. A reivindicação que o amor faz a quem quer vivê-lo é se fazer persistente e confiante na sua possibilidade. Afinal as coisa que mais valem a pena são aquelas que mais trabalhamos para ter.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Análise de Filme - A Caça


            O filme dinamarquês A Caça (Jagten, 2012) mostra um lado muito sombrio do ser humano, de extrema violência. Lucas é um quarentão que trabalhava em um jardim de infância de uma pequena vila. É amigável e é também muito querido pelas crianças da escola onde muitas vezes era feito de palhaço pelos pequenos. Havia acabado de passar por um divórcio e lutava pela guarda de seu filho adolescente. Estava se envolvendo amorosamente com uma colega de trabalho e tudo parecia que ia bem. O que poderia dar errado nesse cenário? Tudo.
            Klara, uma pequena menina da escola em que Lucas trabalhava, nutria por ele uma paixão infantil. Como todas as paixões era intensa e perigosa. O professor por ser vizinho dela muitas vezes a acompanhava de casa até à escola e fazia também o caminho de volta. Klara sofria de determinadas obsessões que a impediam de pisar nas listas na rua e com isso não olhava para frente o que fazia com que não visse para onde estava indo e se perdesse. Lucas se compadecia dela e era extremamente carinhoso e atencioso e deixava a menina brincar com sua cadela. Uma menina levemente problemática, bastante imaginativa e solitária. Não é de se surpreender que iria se apaixonar pelo professor.
            Conforme essa paixão infantil vai sendo alimentada por Klara ela começa a querer a beijar o professor na boca, coisa que viu em fotos pornográficas e mais muitas outras coisas que pertenciam ao seu irmão adolescente. Lucas prontamente se desvia do beijo. Klara manda um coração de plástico para ele e ele diz a ela que ela deveria mandar esse coração para algum coleguinha ou para o pai e mãe. Óbvio que Klara se sente rejeitada e uma paixão intensa pode facilmente se tornar fúria. Enfurecida, ela conta à diretora da escola que odiava Lucas e inventa que ele havia mostrado suas partes íntimas em ereção para ela. Como era de se esperar isso causa um choque na diretora que envolve a polícia no caso. Avisa todos os pais do ocorrido e Lucas que era antes querido por todos passa a ser visto como um pervertido.
            Tudo vira uma verdadeira caça às bruxas e mais pais começam a dizer que seus filhos também foram abusados pelo professor. Torna-se uma verdadeira epidemia histérica onde o gozo é se tornar vítima de uma situação atroz. As próprias crianças entram nessa alucinação coletiva e dão cada vez mais detalhes escabrosos do que supostamente lhe aconteceram e os pais empreendem uma verdadeira cruzada contra Lucas que fica proibido de fazer compras, sair na rua e continuar com a vida. O que é assustador é perceber com que facilidade e ganância Lucas já é tido como perverso e com que violência as pessoas o tratam.
            Mesmo após Klara ter dito para a sua mãe que havia inventado tudo e que Lucas nada havia feito não adianta. A mãe já estava cega e decidida a se entregar à violência que sentia. Nega o que a filha diz e acredita que esta falou isso porque tem medo e queria proteger Lucas. Crianças não mentem é o que todos dizem e repetem. Ora, uma criança mente e muito e todos negaram esse fato para poderem gozar na violência. É um fato que todo indivíduo carrega dentro de si violência e achando uma brecha essa violência pode se manifestar. O ato de se arrumar um bode expiatório para se projetar a agressividade que se sente gera certo tipo de prazer e alucinar situações para justificar a violência se torna possível.
            Uma criança que afirma ter sido abusada precisa ter isso bem apurado, pois abuso é coisa séria e altamente destrutiva. Entretanto, o que acontece no enredo do filme é que as coisas não foram devidamente apuradas. Simplesmente Lucas serviu como depositário de toda agressividade reprimida das pessoas na vila. Ele se tornou um monstro porque as pessoas projetaram nele seus lados monstruosos. É isso que é sombrio no ser humano: a razão é negada e o que há de pior dentro de cada um toma conta e esse lado obscuro se espalha impedindo que as pessoas pensem e reflitam sobre o que realmente se passa.
            Depois das autoridades terem apurado o fato e nada constatarem Lucas foi solto e mesmo assim se tornou vítima da violência levando pedradas e ouvindo impropérios. Sua cadela foi morta como retaliação e sua vida e a de seu filho se tornaram impossíveis. E assim como veio passou. O pai de Klara, antes amigo de Lucas, decide que essa história é falsa e voltam a bons termos. Os outros da vila também seguem esse movimento e Lucas é aceito novamente até que numa caçada alguém atira bem perto de Lucas para mostrar que ainda se lembravam. Mas se lembravam do quê se nada havia ocorrido? Se lembravam que tinham dentro de si destrutividade e que esta sempre precisava de algum depositário. O ser humano tem mesmo um lado terrível e mesmo pessoas aparentemente tranquilas podem realizar os piores atos possíveis quando não existe uma mente para pensar verdadeiramente.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Pergunta de Leitor - Barril de Pólvora


Meu melhor amigo tem uma mulher que dá em cima de mim. Meu amigo nada percebe e o problema é que a mulher dele é muito bonita. Me imagino muito com ela e estou por um fio para sair logo com ela. Não queria fazer isso com meu amigo, mas me parece que ele não cuida da mulher como deveria. Ela me disse que ele não transa com ela o tanto que ela gostaria e que ela tem muito desejo por mim. Eu sou um fogo na cama e sei que posso satisfazê-la, mas se meu amigo descobre pode estragar a nossa amizade. Só que eu penso que também sou homem e que ele no meu lugar ia querer sair com ela. Fico em dúvida.

            Seu melhor amigo você diz e você? É o melhor amigo dele? Creio que não pois o amigo verdadeiro não trai. A amizade prioriza antes de tudo mais o bem estar e o acordo. Você faz justamente o contrário, você prepara a guerra e a luta. Seu conceito de amizade é deturpado, ou seja, você mesmo se engana quando o chama de meu melhor amigo.
            E que mulher é essa? Que te coloca contra seu “amigo”? Ela também trai o marido e te convida a fazer a mesma coisa. O que você não sabe ainda é se cede ao pacto de traição com ela. Precisa pensar bem porque quem se senta em barril de pólvora tem enormes chances de não ter final feliz.
            Caso ceda e fique com a mulher do seu “amigo” estará sendo perverso, porque para o perverso a única coisa que conta, a única lei a que obedece é o próprio prazer. O perverso nega os limites já que limites trazem uma barreira a alguns tipos de prazer. Por isso o perverso ultrapassa os limites e quebra qualquer lei, seja ela qual for. Essa mulher é perversa, com certeza, pois busca prazer custe o que custar. Na vida é importante saber que nem tudo se pode.
            Quanto ao fato de você ser homem e ser difícil resistir aos encantos da mulher que te seduz, por favor, conta outra. A sua desculpa é esfarrapada e no mínimo simplória. Nem você mesmo, duvido, acredita nisso. Você gosta mais do seu “fogo” do que de estar com essa mulher em si. Se tem tanto “fogo” assim não será difícil para você ter outra mulher, não? Mas a que quer é a do amigo, não porque goste dela e sinta sentimentos por ela, mas porque você teria que transgredir. A transgressão é que está te seduzindo e você precisa escolher se cede à perversão ou aprende de vez que para tudo há limites.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Saúde Mental


            Já me perguntaram variadas vezes o que entendo por saúde mental. É uma pergunta difícil de ser respondida com exatidão e que é, até hoje, fonte de debates entre muitos estudiosos. No entanto, para não correr a tentação de fugir vou escrever brevemente de acordo com meu ponto de vista atual. Digo atual porque amanhã outras coisas podem ser acrescentadas à minha opinião. Afinal, a vida está em constante mutação e exige que aprendamos com as mudanças.
            Entendo que ter saúde mental é um estado no qual a pessoa consegue e se permite ser feliz consigo mesma apesar de todas as limitações e dores que a vida proporciona. Ser mentalmente saudável implica em ser relativamente eficaz em lidar com as agruras da vida, tanto vida externa quanto vida interna. É ser um participante ativo da própria vida. Já estar mentalmente enfermo significa viver de forma ineficaz, ou seja, lidar com os problemas da vida de forma custosa e que traga infelicidade. É quem fica preso numa forma de viver a vida de maneira pesada e onde não há espaço para a esperança. O candidato a ser mentalmente saudável e enfermo têm os mesmos problemas, porém reagem a eles de forma diferente. Então estar bem significa reagir de maneira adequada. E essa reação adequada é algo que se aprende ao longo da vida.
            Alguma pessoas, no decorrer de suas vidas, vivem experiências positivas e aprendem a reagir eficazmente e jamais “adoecem”. Apenas têm períodos mais ou menos, mas sempre estão prontas para outra e se refazem rapidamente. Outras não têm tanta sorte. Vivem experiências negativas e/ou reagem tão negativamente que terminam por adoecer. Aí precisam de ajuda para aprenderem a viver a vida de outra maneira. Sozinhas ficam perdidas nas suas dores e cegas para outros pontos de vista. Necessitam, então, de alguém que as ouçam e que as ajudem a criar espaço para que elas mesmas se ouçam. Se ouvir, de fato, é a melhor maneira para se transformar.
             Ter saúde mental não se traduz por se ser de um jeito ou de outro e nem por responder a um dado teste psicológico desta ou daquela maneira. Ser mentalmente saudável é saber o quanto se pode ser feliz com a vida que se vive, é aprender com a vida. Saúde mental não se mede quantitativamente, mas se percebe pela qualidade que se dá à vida. Não se trata de algo tangível concretamente, mas de algo que é tangível simbolicamente e que por isso mesmo, por ser simbólico, requer outro olhar mais refinado e subjetivo.