segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Você está desgastado ou afiado?


      O escritor irlandês George Bernard Shaw escreveu a seguinte frase: “A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos.” Acho essa sentença linda e muito profunda. Ela nos permite pensar em como vamos lidar com os acontecimentos ao longo da vida e que tipo de pessoa vamos nos tornar. Se vamos sair mais “afiados” e experientes das nossas vivências ou se vamos nos desperdiçar ou ficar tão exaustos que viver virará um fardo insuportável. Só que a grande questão a se pensar aqui é que o material de que somos feito não é algo que é decidido por nós, mas somos nós que o fabricamos.
    Como fabricamos um bom material que nos permita que a vida nos enriqueça? A resposta, aliás, é bem simples, tão simples que nem nos damos conta de quão complexo é. É um fato que as coisas mais simples da vida são complexas de realizar. A resposta está na mente, que é sempre o melhor recurso de que dispomos na vida. Como cuidamos de nossa mente é o que forma o material que nos permite tirar o melhor da vida ou sucumbir a ela.
    As pessoas, de forma geral, associam a mente a tudo aquilo que é racional e lógico, porém, a mente é muito mais que isso. Claro que a racionalidade é parte da nossa mente e é algo necessário para resolvermos importantes questões que pedem por razão e lógica. Sem essa parte não conseguiríamos nos organizar eficientemente. Contudo, a mente é muito maior que apenas essa parte racional, ela contém também a maneira com que nos relacionamos com nossas emoções e como nos ligamos a tudo na vida.
    A forma ou a visão que adotamos para viver a vida cria a qualidade com a qual vamos enfrentar tudo o que nos acontece. Há pessoas que frente a qualquer dificuldade usam de tantos mecanismos de defesa que acabam por se impedir de aprender com as experiências. Estão sempre reativas e ficam irritadas quando a vida não é como gostariam que fosse. Querem bater de frente com tudo e uma coisa dá para ser dita com certeza: bater de frente com a vida nunca é um bom negócio, porque sempre vamos perder. Ninguém vence uma onda, mas aprende a mergulhar sob ela para passar com o mínimo dano possível; ou a subir por ela para não ser arrastado. Quando brigamos com tudo e lamentamos a vida porque ela não nos oferece um mar tranquilo cheio de rosas acabamos fabricando uma mente (material) que só vai se desgastar, ficar cada vez mais fraco.
    No entanto, quando nos permitimos aceitar que a vida não nos deve nada e nos oferece inúmeros desafios e até dissabores podemos então aprender a lidar com os acontecimentos de maneira mais realista e saudável. Assim, aprendemos a como tirar proveito das situações, a fazer o melhor dadas as condições. Como já dizia um antigo ditado, é “fazer das tripas, o coração.”
    A escolha é nossa. Podemos decidir como vamos viver a vida. É uma decisão pessoal e intransferível de cada um. Há aqueles que escolhem bem, optam por aprender e fabricam para si uma mente que a vida deixa cada vez mais afiada. Tristemente, há outros que insistem em brigar com a vida e tecem para si um material que forma uma mente débil e abatida que faz com que tudo fique sem graça e custoso.      De que material você vem se construindo? Se for de um material debilitado é melhor mudar isso rapidamente.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O pulo do sábio

     
     Há uma lenda antiga no zen-budismo que conta sobre um jovem, mais ou menos versado na arte da guerra, que tinha um temperamento muito colérico. Estava sempre brigando e arrumando encrenca por onde quer que passasse, dando medo em muita gente e tirando outras do sério. Até um dia em que ele foi parar na casa de um grande mestre e quis arrumar briga com ele. Num movimento ágil o mestre amarrou o jovem e o deixou imobilizado. O jovem gritou, esperneou, jurou vingança e as piores atrocidades contra o velho mestre, mas este ficava ali perto só rindo do jovem e da sua ira. O jovem ficou por mais de três dias amarrado e só gritava e xingava até o dia que cansado ficou quieto. O mestre chegou perto dele e lhe disse: “Essa sua raiva de nada lhe adianta, só lhe deixa preso, mas você poderia usar a sua raiva como uma verdadeira transformação na sua vida, se souber contê-la”. E foi assim que o jovem começou sendo treinado para ser um verdadeiro sábio.
​     A questão não é não sentir raiva, mas como a usamos em nossas vidas. Podemos nos entregar à raiva e brigar com tudo e todos, mas isso só nos levará ao perigo porque uma hora ou outra sempre vamos nos arriscar a um ponto sem volta. Podemos também pegar essa raiva e colocá-la dentro de nós e, com isso, nos tornamos amargurados. Qualquer que seja entre essas duas ações a vida fica aprisionada e sem graça. Entregar-se à raiva simplesmente não muda a realidade. 
   Só mudamos a realidade quando começamos a pensar. Não me refiro aqui ao pensar lógico, racional, mas ao verdadeiro pensar a vida. É um pensar misturado ao perceber e tolerar a nossa mente e seus conteúdos. Quando percebemos e toleramos o que se passa dentro de nós podemos então aprender algo novo e isso leva a um novo pensamento. Ficamos livres para pegar outros caminhos e não seguir simplesmente os mesmos e velhos caminhos de sempre. Mudar a realidade interna pode levar a mudar como vivemos a realidade externa. Esse é o grande entendimento do sábio.
    ​Geralmente, o que nos gera muita raiva é quando nos frustramos que o mundo e os outros não são como gostaríamos que fossem. Quando nos percebemos separados e entendemos que não controlamos os outros nem as situações ficamos enraivecidos. Pensem num pequeno bebê. Ele é totalmente dependente de quem cuida dele e quando necessita de algo começa a chorar e espernear. Um bebê não tem outros modos de lidar com a frustração e abrindo o berreiro faz com que seja notado e alguém venha cuidar dele, satisfazer suas necessidades. Conforme o bebê vai crescendo ele vai se deparando com cada vez mais frustrações e vai notando que não basta tão somente chorar para resolver as coisas, mas, sim, que ele precisa aprender a lidar com as adversidades de outras maneiras e que nem sempre poderá ser satisfeito na hora que quiser. É um processo que leva tempo e que demanda muita tolerância, afinal, construir toda uma capacidade de pensar não é da noite para o dia.
​    Infelizmente, muita gente vive com a mente primitiva de um bebê, mesmo sendo adulto, e nunca aprende a desenvolver os próprios recursos internos para lidar com a vida de uma maneira mais eficiente. Se não mudamos como lidamos com nossas emoções, se não evoluímos nisso, sempre ficaremos presos a tudo o que sentimos.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

O lar é interno e não fora


     Um antigo ditado oriental diz, muito sabiamente, que no mundo não há casa nenhuma, a não ser que a gente a encontre em nós mesmos. Este ditado faz referência ao fato de que, com muita frequência, estamos procurando um lugar para chamar de casa ou de lar. Queremos, desesperadamente, nos sentir em casa em algum lugar ou com alguém, mas agindo sob a luz do desespero, nos equivocamos facilmente e terminamos na infelicidade.
   É desesperador não se sentir em casa. Isto causa pânico, causa muita ansiedade e insatisfação. Estar sem casa torna a vida insuportável. Porém, onde ou qual é a nossa casa? Aí começam os enganos, pois são muitos os que chamam de casa uma posição na vida, um relacionamento com alguém ou até mesmo um bem material.
     A casa que todos nós necessitamos não se trata tão somente de uma casa concreta, lá fora, externamente, mas de uma mente própria que nos acolha. A nossa casa é a nossa mente. Se isso não for entendido vamos sempre procurar por uma casa ou por algo que chamaremos de lar no ambiente exterior e não desenvolveremos a nossa própria mente.
    Quem não tem essa casa/mente vive desamparado. Aliás, a famosa síndrome do pânico, conhecida por tanta gente e falada exaustivamente na mídia, é, falando de maneira bem simples, um estado de mente em que a pessoa não sente que tem essa casa/mente e fica em estado de grande desespero. Não há como ela se acolher, não tem como acolher as próprias emoções e tudo o que sente. Daí a importância de se construir uma casa que realmente nos acolha.
    Quem não tem casa acaba morando de aluguel, ou seja, em uma casa que não é própria. E a coisa que mais se tem é gente morando de aluguel vida afora. São pessoas que acreditam que não podem ter uma casa própria interna e procuram lá fora uma casa de aluguel que possam utilizar. Por exemplo, é grande o número de pessoas que procura em seus parceiros amorosos esta casa/mente e com isso acaba pesando ou inviabilizando a relação. Por mais que alguém nos acolha, se não tivermos a nossa própria casa interna, sempre vamos nos sentir desamparados, porque não podemos viver dentro do outro, mas apenas dentro de nós mesmos. ​
    Marido, esposa, namorado(a), amigo, nem analista podem ser a casa do outro. Na análise, entretanto, o analista “empresta” sua mente ao analisando, não para que este estabeleça residência ali, mas para que ele encontre um lugar favorável para aprender a construir a própria casa. Quando fazemos análise passamos por um processo de edificar a própria casa. O analista, por já ter passado pelo mesmo processo e ter aprendido a erguer seu lar interno, tem condições de ajudar o analisando a compreender que não dá para passar a vida inteira pagando aluguel e que se não arquitetar a própria moradia sempre ficará desamparado e infeliz.
     Então não é uma questão de encontrar uma casa para podermos habitar, mas de construir uma dentro de nós mesmos. Somos todos chamados a ser arquitetos e engenheiros da nossa própria vida. Somos decoradores também, escolhendo como vamos decorar nossa casa/mente. Quem nunca brincou, quando criança, de construir uma casinha, cabana ou barraca? Só que agora não é mais brincadeira, mas se trata de conceber um espaço interno em nós para nos acolhermos e nos sentirmos definitivamente em casa.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Saber desejar bem


      O filme francês A pele de Onagro (2010), baseado no livro homônimo de Honoré de Balzac, publicado em 1831, conta a história de um jovem e ambicioso aristocrata falido que tomado pelo desespero de sentir que havia fracassado em tudo a que se propunha e também por não ter seus desejos satisfeitos, planeja se matar. Antes desse ato acontecer ele encontra num antiquário um estranho e velho cego que lhe oferece uma misteriosa pele de onagro (um tipo de asno no Oriente) que satisfaz todos os desejos de quem a possui. Todavia, para isso, a vida de quem tinha os desejos atendidos seria encurtada drasticamente.
      O jovem, muito frívolo e pouco sábio, aceita o pacto e em questão de horas torna-se muito rico e admirado por toda Paris do século XIX. Ele fica inebriado pelo luxo e pelos prazeres que sua nova posição lhe confere e encontra uma bela condessa por quem se apaixona perdidamente devido a seu esplendor, deixando de lado o amor de uma moça honesta e humilde com quem anteriormente estava envolvido. Evidentemente, todas essas suas escolhas vão se mostrando desastrosas e cobrando um preço alto demais tanto para o jovem quanto para muitas pessoas ao seu redor.
     Essa história já foi contada diversas vezes e de variadas formas por muitos bons autores. O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, por exemplo, mostra uma pessoa que para ter seus desejos atendidos faz um pacto com alguma força sobrenatural, sofrendo, depois, as terríveis consequências. É um tema recorrente na literatura, teatro e cinema porque conta algo que se passa com muitas pessoas mundo afora. Basta ver as histórias daqueles que ganhando muito dinheiro na loteria acabaram em pouco tempo perdendo tudo, ficando em situação pior do que antes de ganhar uma fortuna.
     Acreditamos que se todos os nossos desejos fossem atendidos seríamos muito mais felizes. Atrelamos nossa felicidade ao quanto somos gratificados externamente e perdemos o foco no que é realmente felicidade. É um estado de mente bem primitivo achar que o que importa é o quanto temos e não o que somos e vivemos de fato. Isso acontece porque nem sempre o que desejamos é bom. Com muita frequência desejamos mal ou desejamos aquilo que vai nos fazer mal. É que desejar bem requer uma mente minimamente desenvolvida, senão vamos desejar o que na verdade não precisamos e nem vai nos fazer tão bem assim.
     São muitas as pessoas que estão desejando mal e se desperdiçando de tal forma que não percebem que estão vivendo como se estivessem sob um pacto maligno que cobra muito caro. Quem não conhece exemplos assim? De pessoas que querem tanto uma coisa, achando que aquilo é tão vital, que desperdiçam energia e vida em algo que depois nem era importante. Gente que quer relacionamentos com aquela pessoa custe o que custar e depois vive uma vida infeliz; outros que querem ter isso ou aquilo para depois perceberem que tudo o que desejavam era apenas uma ilusão. Se o desejo está baseado na ilusão o resultado será sempre infelicidade. Para não ser assim é necessário que o desejo seja verdadeiro, que ele esteja numa outra dimensão interna e que tenha um sentido.
      Desejar por desejar é sempre algo que nos leva ao perigo e nunca ao crescimento. Até para desejar é preciso desenvolver uma mente.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A vida é daqui para a frente


      ​É muito comum encontrar pessoas que quando falam de suas vidas se lamentam por não terem feito determinadas coisas no passado. O arrependimento e queixas são grandes e frequentes. Ouvimos pessoas dizendo que deveriam ter se casado quando tiveram a oportunidade, outras que não deveriam ter casado, uns se queixam de não ter estudado e se aplicado mais, enquanto outros reclamam de terem estudado o que na verdade não desejavam. Existem pessoas que lastimam não terem começado a praticar exercícios físicos no passado ou cuidado mais da saúde, enquanto outras lamuriam-se por não ter aproveitado mais a vida. Não faltam exemplos desse tipo.
     ​Contudo, quando as pessoas se queixam acreditam que hoje a vida já está uma droga ou, pelo menos, bem prejudicada devido às atitudes do passado e que no tempo presente, nada ou quase nada pode ser feito ou aproveitado. Aí está um equívoco. Não dá para mudar o que já se passou, mas dá para mudar o que se vive agora. Infelizmente, são muitos os que não se lembram ou não veem as coisas desse jeito.
    ​Um antigo proverbio chinês diz: “A melhor época para se plantar uma árvore foi há 20 anos. A segunda melhor é agora”. Pensar nesse ditado é algo bem realista e que pode nos dar muitas esperanças. É um ditado que abre as possibilidades e torna a vida muito mais interessante.
    ​Obviamente muitas coisas na vida, se tivessem sido feitas numa época anterior, mais cedo, teria tido desdobramentos muito mais positivos. Por exemplo, se alguém tivesse começado a fazer exercícios físicos quando mais jovem teria aproveitado muito mais benefícios ao longo de sua vida do que se começar a fazer depois de uma certa idade. Neste caso, entretanto, vale muito mais a pena começar a fazer algo quando der, mesmo que numa época mais tardia, do que ficar reclamando. Vale mais a pena fazer algo agora do que não fazer nada. 
    ​Certamente, algumas atividades não podem ser feitas depois de uma certa idade. Não adianta uma pessoa querer escalar montanhas aos 70 anos quando nunca fez isso na vida, mas não significa que outra atividade muito prazerosa e desafiadora não possa ser encontrada. De fato, há determinadas coisas que não podem ser mais; devem ser, então, abandonadas. Mas outras podem surgir. Nossa capacidade de nos reinventar é enorme e sempre surpreendente.
    ​Até mesmo grandes mudanças sociais as quais necessitamos e que deveriam ter sido implementadas gerações atrás devem e podem ser realizadas agora. Afinal, o que não dá é para ficarmos parados nos lamentando do que poderia ter sido. 
     ​Num processo analítico vemos que devemos aprender com o que aconteceu para pensar no que queremos daqui para a frente. A vida só pode acontecer daqui para a frente e nunca para trás. Dizem que uma paciente do psicanalista francês Jacques Lacan queixou-se com ele que ela deveria ter começado a análise antes na vida. Talvez se ela tivesse feito isso teria trazido muitas coisas boas, mas ele a cortou e disse: “A gente faz o que pode. Você chegou aqui quando deu para chegar.” Com isso, Lacan mostrou que ela não deveria perder tempo com o que poderia ter sido, mas com o que ela queria para si a partir de agora. Bela lição!