segunda-feira, 31 de julho de 2017

Coração de Rato




            Uma antiga lenda budista conta sobre um rato que vivia amedrontado com os gatos e um feiticeiro apiedando-se dele o transformou num gato e o animal passou então a temer os cães. O feiticeiro mudou-o então para cão, mas ele passou a temer as onças. O mágico transformou-o em onça e ele passou a ficar com medo dos caçadores. Nesse ponto o feiticeiro desistiu e o fez virar rato novamente lhe dizendo: Não importa no que eu te transforme, porque você sempre carregará o coração de um rato!
            Com bastante frequência acreditamos que se fossemos de um jeito ou de outro seríamos mais felizes e que não teríamos problema algum. Engano. O problema é que muitas vezes acreditamos em ilusões e isso só traz frustrações desnecessárias. Só podemos ser felizes se abandonarmos as ilusões e passarmos a viver de fato a realidade.
            Quantas vezes não escutei no consultório atendendo os meus pacientes ou ouvindo pessoas conhecidas ou amigas reclamarem da vida e dizendo: “Se eu fosse mais rico não sofreria e nem teria problema”, “Se eu tivesse alguém que me amasse tudo estaria bem na minha vida”, “Se minha mulher/marido me entendesse e fosse diferente, eu estaria no paraíso”, “Se eu fosse outra pessoa que não eu mesmo tudo ia ficar bem”. Pois bem, isso é frequente e totalmente inverdade.
            Só podemos ser nós mesmos e isso já está de bom tamanho e já implica trabalho suficiente. Precisamos aprender a trabalhar com o que temos, a lidar com a nossa realidade e com o nosso presente. Para se ficar bem na vida é vital aceitar nossas adversidades e aprender com elas, sejam elas quais forem. Os problemas dos outros sempre parecem mais fáceis, mas a verdade é que cada um tem a sua cruz para carregar e de nada adianta fugir dela. Aceitar isso já é uma das maiores transformações que podemos realizar na vida. E uma das mais úteis também.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Pergunta de Leitora - Não se faz Omelete sem quebrar os Ovos




Estou casada com um tirano. Ele me trata como uma empregada doméstica sem salário. Não tenho um único gesto de carinho e reconhecimento. Ás vezes ele chega a me bater e quando tenho que pedir dinheiro para ele, ele fica furioso e grita comigo como se eu estivesse tirando tudo dele. Me chama de inútil e imprestável e diz que nem como prostituta eu daria certo. Tenho uma filha de 4 anos e não sei que educação estou dando para ela. Ele nos despreza. O que será que eu posso fazer? Me dê uma luz. Só não quero me separar porque não sei fazer nada na vida e não tenho para onde ir. Tenho muito medo de ficar jogada e não sei se aguento ficar sozinha.

            Você coloca tão poucas possibilidades de ser ajudada que faz pensar se quer mesmo resolver essa situação. Como será que você espera ser ajudada? O que será que você imagina que seria uma luz para o seu caso?
            Se você espera que seu marido vá mudar está se enganando. Não temos como ser felizes quando desejamos o impossível. Pelo o que você conta seu marido te tortura, até te bate, te humilha e isso é caso de polícia. É contra a lei sofrer abusos e o agressor pode até ir para a cadeia. Mas a questão é se você conseguiria seguir esse caminho.
            A falta de confiança em você mesma faz você temer ter que cuidar de si e da sua filha. Portanto, você só sairá dessa posição que você se encontra à medida que puder ter um auto olhar mais apreciativo por você mesma. Não tem saída fácil e sem preço para o que você vive hoje. Como é você e só você que vai pagar o preço precisa decidir até onde está disposta a ir, mas não se iluda que exista uma solução sem você mudar a posição que ocupa ou de que seu marido vai ter uma transformação milagrosa e passar a te tratar com dignidade. Como já se diz no ditado popular “Para se fazer uma omelete é preciso quebrar os ovos”, ou seja, caso queria mesmo uma mudança vai ter que quebrar algumas barreiras que hoje te seguram, senão nada ocorrerá. 

segunda-feira, 24 de julho de 2017

O Poder do Hábito




            Muitas e muitas vezes fazemos as coisas ou reagimos às situações de uma maneira automática, sem muita consideração ou reflexão. Nos acostumamos facilmente a uma dada atitude e mesmo que um determinado hábito até nos faça mal ficamos refém da repetição. O hábito, quando nunca colocado em perspectiva, funciona como uma fôrma que molda como vamos viver e nos relacionar.
            Essa resposta automática frente à vida é prejudicial. No entanto ela é mais fácil. Muito mais difícil é ter que pensar e refletir sobre o que nos acontece e como vamos responder de maneira eficiente em cada situação. Agora, “ir no automático” não requer considerar a situação atual, porém apenas utilizar todo aquele repertório de respostas já conhecidas. Com certeza viver assim é viver ineficientemente.
            O poder do hábito nos faz ficar apenas com aquilo que é conhecido e desconsidera as peculiaridades do que um evento no aqui e agora traz e demanda. Quem só fica no terreno conhecido perde a espontaneidade e a criatividade e por isso mesmo nunca obtém nada diferente daquilo tudo que já foi obtido anteriormente. Permanece sempre numa repetição sem fim, dentro do mesmo roteiro, das mesmas situações e dos mesmos problemas.
            Uma antiga parábola tibetana nos faz pensar bem sobre isso: Dois gatos iam passando por uma passarela em sentido contrário. No meio se encontraram e um esperava que o outro abrisse passagem para seguir o caminho. Como ninguém cedeu os dois gatos iniciaram uma discussão com altos gritos. “Sou mais importante, então, você saia da frente”. “Sou mais bonito, por isso tenho a preferencia”. “Sou maior e posso te empurrar longe se eu quiser.” “Tenho muitos amigos gatos que te darão uma surra épica.” Tanto ficaram nessa discussão que todos os outros gatos pararam para assistir o circo, até que um gato sábio chegou até os dois e disse-lhes: “Vocês dois não percebem que estão todos rindo de vocês? Que pelo hábito da arrogância que carregam não conseguem se desapegar de querelas insignificantes?” Os gatos até conseguiam compreender que essas palavras eram sábias e verdadeiras, mas tendiam sempre a reagir do jeito conhecido, afinal era o instinto e estavam apegados demais em agir no automático.
            Se os gatos pararam a briga e resolveram de outro jeito? Bom, cabe a cada um decidir qual o fim da história. No final, somos nós que decidimos o que vamos fazer.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Pão e Vinho




            Há pessoas que batalham dia e noite pelo pão diário. A vida não é mesmo fácil e exige muitos sacrifícios para podermos sobreviver neste mundo. Somos como formigas, em muitos momentos, que se esfalfam enfrentando dissabores e engolindo muito pão que o “diabo amassou” para ao fim do dia nos sentirmos seguros. Nessa situação estamos todos nós e em si não há nela problema nenhum, faz parte da vida. O problema surge quando a vida é só isso.
            Ás vezes, nessa labuta diária pela sobrevivência, nos esquecemos de viver. Ficamos tão obcecados pela sobrevivência que endurecemos nossos corações para saber aproveitar melhor o vinho da vida. É que, na verdade, só vale a pena correr atrás do pão do dia a dia se também tomamos o vinho que nos aquece e alegra a alma. Uma vida só correndo atrás do pão não é vida, porque o que nos faz humanos é mais do que a sobrevivência, é poder ir além dela e nutrir o espirito. A gente só alimenta o espírito cultivando relacionamentos sadios, se enternecendo pelas artes, indo além da necessidade orgânica, nos encantando com os mistérios ao longo da vida, etc.
            Quando esquecemos o sabor do vinho a vida se torna dura e intolerável. Viver perde o sentido. Na vida não pode só haver ônus, mas também bônus. O contrário também é verdadeiro. Não podemos só querer o vinho e viver inebriados porque até mesmo para o prazer precisa existir limites, senão ficaríamos sempre de ressaca e desta maneira ninguém faria nada, o pão deixaria de ser buscado.
            Viver realmente implica em encontrar equilíbrio entre as demandas que a vida exige e o prazer que necessitamos construir e criar. Estamos sempre numa corda bamba, sem jamais pender para um dos lados a ponto de cair. Temos que ser malabaristas, artistas e não é à toa que se fala tanto que viver é uma arte. Tornar-se humano é a mais bela arte que podemos empreender, pois esta beleza é a que dá sentido à vida e que nos ajuda a ultrapassar os limites da sobrevivência para tocar  o encanto que jamais pensávamos ser possível: o encanto de ser grato à própria existência.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Pergunta de Leitor - Mulher idealizada e Mulher Real




É muito difícil encontrar uma mulher decente hoje em dia. Elas só querem saber de sexo ou de ter as coisas todas do jeito dela. Não consigo namorar por causa disso. Não gosto quando uma mulher manifesta abertamente que gosta de sexo. Me sinto desestimulado. Prefiro aquelas que são recatadas e que fazem sexo por causa do amor que sentem pelos seus homens e não porque querem saber do sexo em si. As pessoas podem até me achar machista, mas acho que são como as coisas têm que ser. Afinal tenho o direito de ser como sou, não é mesmo? O que você pode dizer do que vem acontecendo com as mulheres hoje em dia?

            Generalizações nunca são verdadeiras e só servem para propagar como verdade algo fantasioso. Quando você diz que é muito difícil encontrar uma mulher decente hoje em dia ou que elas só querem saber de sexo você está generalizando e tornando verdade algo que não é real. Em outras palavras, tudo isso é como você sente que são as coisas e não como elas são realmente.
            Agora, por que uma mulher não poderia gostar de sexo? O que de mal poderia haver nisso? O x da questão aqui é como você imagina que tenha que ser uma mulher. Hoje você fica dividido entre a mulher real e a mulher da sua imaginação. Quer que sua idealização se sobreponha à realidade. E como isso não acontece você se frustra e passa a generalizar as coisas.
            A mulher que você deseja não existe na realidade, apenas na sua imaginação, porque você quer uma mulher que abdique do direito à própria sexualidade. Mais ainda. Você deseja uma mulher infantil, pois esta está submetida a um adulto, que a controla e decide o que ela deve pensar e até mesmo como ela deve desejar e usar o próprio corpo.
            Seria interessante você se questionar se tem medo de uma mulher real e adulta. Talvez uma mulher assim lhe seja ameaçadora e você não saberia lidar com o desejo dela. Não é porque uma mulher deseja sexo e seja mais resolvida nessa questão que ela necessariamente não será decente. Existe muita decência numa mulher que vive a própria sexualidade de uma forma saudável e firme. Abandone as generalizações e passe a entender mais as imposições que você se coloca. Assim, poderá abandonar a ideia de uma mulher idealizada para encontrar de fato uma mulher real.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Saborear




            Há uma antiga história que conta que um grupo de ex alunos de um velho mestre foi visitá-lo. Lá, todos reunidos, a conversa começou a ir para as reclamações. Uns diziam que a vida ia mal porque podiam estar ganhando melhor, outros se lamentavam que não eram devidamente reconhecidos, etc. O mestre só ouvia e nada falava. Após algum tempo o mestre fez café e colocou vários tipos de xícaras para os alunos se servirem. Algumas eram caras e raras, enquanto outras eram banais e de plástico. Os alunos se utilizaram das mais valiosas e o mestre por fim disse: Vocês todos estão tomando o mesmo café, o mesmo gosto, mas cada um de vocês está olhando a xícara dos outros e avaliando quem está com a melhor. Por isso mesmo não conseguem saborear o café porque não sabem saborear o que importa e se preocupam com o que não é importante.
            Essas histórias, quando bem assimiladas, sempre nos trazem verdades importantes. Se o café puder ser entendido como a vida, como será que estamos saboreando a vida? Com isso não quero dizer que não podemos ter lá nossos luxos ou que não podemos aproveitar e nos interessar por bens materiais, mas contanto que não percamos nunca de vista que o mais importante é aproveitar as experiências de vida.
            Reclamamos muito e com muita frequência sobre inúmeras coisas: nosso trabalho, nossos relacionamentos, nossos problemas financeiros, nossas raivas e ódios, mas poucas vezes paramos para saborear as coisas boas que temos e vivemos. Se nossos olhos estão sempre procurando o que nos falta não sobra mesmo tempo e espaço para aproveitar o que se tem.
            Infelizmente as xícaras acabam, para muitos indivíduos, sendo mais valiosas que a bebida que tomam (vida). Porém, não é a xícara que fornece o sabor e compreender isso é fundamental.  Quem não aprende isso jamais conseguirá ser grato para com a vida, mas sempre se lamentará por causa de qualquer adversidade, mesmo que esta não seja tão importante assim no fim das contas.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Pergunta de Leitora - A resposta de Freud



Sou mãe de dois filhos. O mais novo tem 16 anos e o mais velho acabou de completar 19. Estou passando por uma situação das mais difíceis. Meu filho mais velho me disse há duas semanas que sente atração por homens. De fato, ele nunca namorou e nunca o vi com nenhuma garota. Estou muito perdida e não sei o que fazer. Ele me disse que tem certeza do que sente e que sabe que não é só uma atração qualquer. Para completar ele falou que se percebe assim há muito tempo. Por favor me ajude. Me indique algum tratamento para que ele possa voltar a ser uma pessoa normal. O pai dele não sabe e acho que não aceitaria uma situação como essa de forma alguma. Não sei qual direção seguir. A psicanálise pode curar a homossexualidade?


            A psicanálise foi criada há mais de um século por Sigmund Freud e vem ajudando muitas pessoas ao redor do mundo a lidar com seus sofrimentos. Em 1935, Freud recebeu uma carta de uma mãe desesperada por saber da homossexualidade de seu filho. Ela suplicava que Freud “curasse” seu filho e que restabelecesse nele a normalidade da heterossexualidade. Coloco aqui embaixo a resposta de Freud, dada há 82 anos atrás, a essa senhora, mas que continua válida e verdadeira.
            “Vejo pela sua carta que seu filho é homossexual. Estou muito impressionado com o fato de você não mencionar o termo ao fornecer informações sobre ele. Posso perguntar por que você o evita? A homossexualidade não é certamente nenhuma vantagem, mas não é nada do que se envergonhar, nenhum vício, nenhuma degradação; ela não pode ser classificada como uma doença; consideramos ser uma variação da função sexual.
             Muitos indivíduos altamente respeitáveis ​​de tempos antigos e modernos eram homossexuais, vários dos maiores homens entre eles (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime - e crueldade também.
            Ao perguntar-me se eu posso ajudar, você quer dizer, suponho, se posso abolir a homossexualidade e instaurar a normalidade da heterossexualidade em seu lugar. A resposta é que de maneira geral não podemos fazer nada disso, mas há algo a ser feito de muita importância.
           O que a psicanálise pode fazer por seu filho é uma questão diferente. Se ele é infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer harmonia, paz de espírito, eficiência, quer ele siga homossexual ou se modifique. Se você se convencer de que ele deve fazer análise comigo - eu não espero que aconteça - ele terá de vir para Viena. Eu não tenho nenhuma intenção de sair daqui. E espero que entenda que posso ajudá-lo a ser um ser humano melhor e não tenho o poder nem a vontade de tentar violentar a natureza de alguém. Atenciosamente.

S Freud”

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Voar




“Todos podemos voar, mas para isso temos que abrir mão do casulo” (Provérbio Oriental)

            Carregamos tanto peso na vida, fardos que não são necessários. Nossas teorias de como a vida funciona, nossas fantasias sobre como a vida deveria ser, a confusão que fazemos entre o que se passa dentro de nós e a realidade externa que acabamos vivendo tudo isso como âncoras que nos deixam para baixo. Viver assim é não saber viver.
            Há pessoas que antes mesmo de viver uma dada situação já imaginam como vai ser, já possuem uma certeza (falsa) de como as coisas se darão e por conseguinte se angustiam prematuramente. Lidam com as ansiedades como se as coisas que temem já tivessem acontecido. Com isso se desperdiçam e carregam falsa ideias sobre a vida.
            A possibilidade de viver bem, com mais dignidade e qualidade, está ao nosso alcance. Para isso se faz necessário nos livrarmos das ideias pré-concebidas que insistimos em carregar e que em nada nos ajuda. Muito pelo contrário, só nos atrapalha. Mas por que é tão difícil largar essas fantasias e teorias que criamos e levamos conosco?
            Provavelmente tem a ver que preferimos ficar no conhecido. Quando vamos para uma situação nova com a mente insaturada, ou seja, aberta e acolhedora para o que vai de fato acontecer ficamos receosos e desejamos nos apegar a algo já conhecido. Daí que nossas teorias e certezas, mesmo que falsas, nos dão certa sensação de segurança. O funcionamento humano é mesmo contraditório, porque sabemos, algumas vezes, que aquilo que conhecemos não vai nos ajudar, mas mesmo assim o medo vence e nos colocamos perante novas vivências com a mente saturada de teorias e ideias que parecem vão nos assegurar. Suportar manter um estado de mente insaturado para aprender com as novas experiências é vital. Isso nos faz crescer e amadurecer. Entretanto, criar e cuidar desse estado de mente é trabalhoso e exigente. Precisamos aprender a viver e parar de empurrar a vida com a barriga. Podemos voar, mas precisamos sair do conhecido.