segunda-feira, 27 de julho de 2020

Nunca sabemos tudo sobre o outro


    ​Achei uma frase da professora de budismo Elizabeth Namgyel muito feliz para pensarmos sobre coisas importantes: “O maior respeito que podemos prestar a alguém é não pensar que sabemos quem ele é”. Ocorre que quando achamos que sabemos quem o outro é a espontaneidade fica prejudicada, e sem espontaneidade os relacionamentos se tornam empobrecidos.
​      Seja nos relacionamentos amorosos ou nas amizades estamos sempre descobrindo o outro. Até porque ninguém é estático, vai mudando conforme o tempo passa e as experiências de vida são assimiladas. É bem comum que amigos, após um período de tempo sem se verem, voltem a se encontrar e se estranhem, inicialmente. Nesta situação, ao não se reconhecem imediatamente, necessitam de tempo e paciência para que cada um vá se dando conta de quem é a outra pessoa agora. 
     ​Um relacionamento amoroso que se iniciou em uma determina época, depois de algum tempo muda, porque o casal já não é mais o mesmo. Na verdade, cada membro do casal vai mudando e, com isso, o relacionamento vai se transformando. Muitos casamentos e uniões se desfazem justamente por esse motivo: o par já não se reconhece mais, cada um olha para um lado diferente, o que faz com que sigam caminhos que tomam direções distintas. 
​     Se acreditamos que sabemos quem o outro é ficamos numa zona de conforto, damos o outro como garantido, bem como deixamos de explorar lados diferentes e interessantes no outro. Por mais convivência partilhada ou por mais intimidade que tenha sido construída com uma outra pessoa, ainda assim, sempre há o que conhecer, sempre há com que se surpreender. Concordo com a autora da frase que diz que se nos disponibilizarmos para estar constantemente conhecendo o outro (cônjuges, amigos, familiares, etc) estaremos mostrando um grande respeito e abrindo novas possibilidades para o relacionamento. 
​    Essa postura de buscar conhecer o outro, aliás, é vital para a prática clínica de um psicanalista. Se um analista se colocar na posição de achar que já conhece seu analisando o tratamento ficará impossibilitado de acontecer. No processo analítico é de suma importância que o analista esteja sempre aberto ao que ele não sabe de seu analisando para poder ajudá-lo a se aproximar do que ele não percebe em si. 
​     É um equívoco achar que se sabe quem o paciente é. Isto limita a percepção do analista e faz com que ele tenha uma visão estereotipada do seu paciente. Seria uma atitude bem arrogante e desrespeitosa. No atendimento clínico e na nossa vida pessoal tal desrespeito não deve ter lugar. Caso o analista pense que sabe tudo sobre quem atende transforma o processo terapêutico, que deveria ser algo vivo e transformador, numa coisa imobilizada e, portanto, morta.
​     A espontaneidade de estar sempre conhecendo o outro permite que os vínculos de uma relação se fortaleçam e, também, oferece espaço para que o outro possa se transformar de maneira livre para ser e viver o que lhe for possível. Aí sim, o respeito tem como nascer.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Arqueologia da mente


            Sigmund Freud, criador da psicanálise, possuía uma vasta coleção de artefatos arqueológicos em seu consultório e o seu amor pelos estudos da arqueologia era tão intenso que ele chegou a afirmar ter lido até mais sobre arqueologia do que sobre psicologia. Seu hobby de colecionar objetos antigos fez até com que um paciente confundisse seu consultório de psicanalista com o escritório de um curador de museu. Arqueologia e psicanálise têm muito em comum.
            A arqueologia é a ciência que estuda civilizações extintas através dos vestígios que restaram delas. É quase sempre preciso uma escavação, camada por camada, para que objetos antigos sejam recuperados e, com estes mesmos objetos em mãos, pode-se inferir como era o modo de vida, o estilo e as crenças das sociedades antigas. É um trabalho complexo e que demanda paciência e extremo cuidado ao lidar com artefatos tão frágeis que correm o risco de virarem pó se forem manejados inadequadamente. E o que é a psicanálise senão uma arqueologia da mente?
            Numa análise, muito do que no passado havia sido reprimido (soterrado) e dado por perdido pode ser recuperado e, com isso, podemos entender muitos dos sintomas do presente. Ao nos depararmos com o passado podemos ter mais entendimento do que nos acontece no aqui e agora e, desta forma, há a possibilidade de nos libertarmos de muitos sintomas que nos prendiam e tornavam a vida dura e desgastante. Nosso inconsciente é tal qual esta civilização extinta e que, se for “escavada”, ou seja, investigada apropriadamente, pode revelar muito sobre nós. É também um trabalho complexo e que exige muito cuidado.
            Para o psicanalista, não são necessários os pinceis ou a tecnologia para manejar os artefatos antigos como eles merecem, mas o respeito e a delicadeza para com a história do outro. O psicanalista necessita da empatia para com o sofrimento que cada analisando carrega a fim de ajudá-lo a lidar melhor com a dor que sente. Esta delicadeza e respeito o psicanalista consegue quando desenvolve a própria mente, através da própria análise pessoal. Desta forma ele poderá ajudar o analisando a entrar em contato consigo mesmo.
            Nas palavras do próprio Freud “o psicanalista, como o arqueólogo, deve descobrir uma camada após a outra da mente do paciente, antes de alcançar os tesouros mais profundos e valiosos.” Temos um tesouro em nossas mentes e descobri-lo nos permite viver com mais qualidade e sabor. Quando ignoramos nosso tesouro interno deixamos de nos conhecer mais intimamente e, por isso mesmo, nos enganamos mais, adoecemos mais e vivemos menos. Podemos todos ser arqueólogos de nós mesmos para desvendarmos e aprender com o passado e, a partir daí criar um futuro bem mais favorável ao crescimento de nossas vidas.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Pergunta de leitora - A própria jornada é indispensável



Queria contar algo, quero saber se isso é normal. Eu vejo coisas que não é como se fosse alucinação, por exemplo: ontem a noite eu estava deitada, quase dormindo, e de repente vi minha irmã em cima de uma cadeira no quarto e eu disse “Linda, (é assim que ela se chama), mas cheguei perto e vi que não tinha nada ali. Eu tenho mania de achar que tem cobra no meu quarto, que vai cair em cima de mim ou sapo. Também fico com pavor da morte. A minha mente não para, cria coisas. Vejo mortes e acidentes a todo instante e isso me incomoda muito. Penso que irei ficar maluca. Meu humor também muda muito. Ás vezes estou muito alegre, depois triste e fico agressiva e digo coisas, mas logo me arrependo. Isso é normal? Eu me acho muito estranha, minha mente cria coisas que me deixa feliz, mas depois cria coisas tristes e não sei como controlar isso. Eu vejo coisas do meu passado, sejam elas boas ou ruins, e é como se fosse um flashback ou uma volta no tempo. É muito louco. Converso sozinha, na maioria das vezes nem me dou conta que estou conversando só e quando percebo penso "será que estou maluca?"
  
            Você percebe vários elementos em sua mente e parece que fica perdida. Quer saber a todo custo se isso é normal. Aliás, seu email faz várias referências à questão da normalidade. Para você existe o normal e anormal, ou seja, está dividida entre um ou outro e coloca nessa divisão um que seja bom e bem-vindo enquanto outro é mau e assustador.
            Ao invés de pensar em termos de bom ou mau, normal ou anormal, podemos pensar que você tem um trabalho interno a fazer, que é conhecer a si própria, para poder ir discriminando sobre os seus produtos mentais. Pode, assim, notar o que é pensamento, o que é alucinação, o que é divagação e etc. Vale muito mais a pena pegar este caminho de autoconhecimento do que simplesmente querer definir rapidamente do que se trata tudo isso. A pressa, nesses casos, só atrapalha e traz qualquer definição como uma maneira de impedir você de vir a conhecer a si própria.
            Você também usou a palavra "estranho". A origem desta palavra vem de estrangeiro e quer dizer "aquilo que é desconhecido ou alienado". A própria palavra alien significa desconhecido e estrangeiro e alguém estar alienado é estar em desconhecimento de algo. Você, hoje, está alienada de si mesma. Quero dizer com isso que desconhece a si mesma. O que sabe de si está mais numa dimensão superficial e há pouca profundidade.
            Resta mesmo, então, aprender a se conhecer. Ao se propor ousar empreender essa jornada de autoconhecimento, poderá vir a conhecer mais de si, bem como estabelecer uma relação mais tranquila com sua mente. Para isso se faz necessário uma análise. Nela, poderá se debruçar sobre os seus produtos mentais e dar a eles um sentido. Poderá dar sentido também à sua vida e aos acontecimentos que já viveu. Tudo isso deixará você mais dona de si e menos impressionada com as “pegadinhas” em que sua vida mental te coloca.  
        Não acha que seria bom se aprofundar mais em si e saber lidar de maneira mais eficiente com tudo aquilo que é seu?

segunda-feira, 13 de julho de 2020

A culpa não é das estrelas


        As pessoas ficam muito preocupadas com essa coisa de destino. Muitas até se valem da astrologia, esoterismo e “trabalhos” para aliviarem ou mudarem os seus destinos, que acreditam serem desfavoráveis ou indesejáveis. E haja receita para isso e aquilo, haja galinha morta em encruzilhada, haja velas acesas não sei por quantos dias, haja simpatia para obter esse ou aquele resultado. Isso acontece com muito mais frequência do que se imagina e em todas as classes sociais e intelectuais. Sim, há pessoas de todos os níveis que ficam tão impressionadas com o que chamam de “destino” que se valem de tudo que é artimanha que lhes dê segurança, mesmo que esta seja falsa e artificial.
     A definição de destino nos dicionários é mais ou menos a seguinte: sucessão de acontecimentos que não se consegue evitar. Ou seja, acredita-se que destino tenha a ver com tudo aquilo que está decidido e escrito e que não pode ser mudado ou, se for mudado, é porque requer uma ação que quebre ou que negocie com o que é dado como certo e definido. Como se pode ver, muitas pessoas acreditam que estão presas num roteiro que já está escrito e que elas nada podem fazer ou, se puderem, precisam de uma ajuda sobrenatural.
      Realmente, viver assim, acreditando que tudo já está pré-estabelecido, deve ser muito desalentador. A sensação deve ser de muita impotência e submissão frente à vida. Quando pensamos que tudo já é algo estipulado não há espaço para a esperança de um futuro melhor e mais tolerável. No entanto, as pessoas possuem muito mais espaço de manobra em suas vidas do que imaginam. Na verdade, as coisas não estão escritas, mas estão sendo escritas pelas próprias pessoas através de suas decisões, de suas escolhas e atitudes. Não somos como frágeis marionetes que só se movimentam quando algo superior acima assim comanda, mas decidimos diariamente como vamos viver.
      A gente pode até não decidir como é o nosso começo. Partimos de situações que estão ali presentes e que não escolhemos, como nossa família ou o lugar em que nascemos, por exemplo. Claro que estas situações vão determinar muitas coisas em nossas vidas, mas muito do que vai vir a acontecer é também determinado pelo o que escolhemos. Sabemos quais circunstâncias determinam de onde viemos, porém, para onde vamos é outra história. E que história será esta depende de cada um, da forma como cada um lida com o que se depara ao longo da vida. 
     É uma jornada que empreendemos e nela temos muita responsabilidade por onde nos metemos e o que enfrentamos. Em outras palavras, há muita responsabilidade que temos que tomar para nós. De nada adianta culpar Júpiter ou Saturno pelo o que nos acontece. Eles estão lá orbitando no espaço sem nem saberem que você existe e sem nem se importarem com o que você faz da sua vida.
  Tendemos a evitar assumir as nossas responsabilidades, todavia, facilmente as projetamos em algo lá fora. Assim, podemos reclamar e nos queixar de nossos tristes destinos e podemos nos sentir vítimas de um azar. Agora, quando tomamos a responsabilidade por nós mesmos não há do que se queixar, mas sim trabalhar para que nossa vida fique melhor. Quando não estamos satisfeitos com o que vivemos só mesmo escrevendo o próprio destino para vivermos diferente.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Pergunta de leitora - Tomar as próprias rédeas


São quase 18 anos de casamento com um homem bom para o senso comum, provedor, mas desde os primeiros dias da lua de fel - sim, lua de fel - não me ajuda a realizar os meus sonhos, não me deu um filho. Tenho agora 41 anos, ele 46 e ele não se move. Ele é um iceberg (intimamente falando). Sou fiel, sou cristã, mas sempre fui infeliz. Canto num ou noutro evento, mas não me sustento. Ele banca a casa, mas é bem sovina. Parecemos irmãos; o amor, se existiu, ficou na igreja, na cerimônia de casamento. Percebo que ele não quer que eu, de fato, leve a música adiante. Ele quer me transformar numa "Amélia", coisa que nunca fui nem serei. As expectativas conjugais são as piores e eu não sei o que fazer da minha vida. Preciso de uma direção, Ele não tem ambição intelectual, eu evoluí e ele ficou nas coisas mínimas e é praticamente uma irmã porque, para mim, é quase um assexuado. Hoje mesmo já tivemos uma discussão. Vivo num relacionamento abusivo. Os meus sonhos e planos pessoais não importam. Ele não precisa de uma esposa com todas as minhas qualidades. Para ele, uma faxineira basta e não quero o lugar de faxineira. Estou muito infeliz.

            Deve ser muito frustrante viver um casamento que parece infeliz. Frustrante também é não se sentir realizada no que gosta de fazer e se ver desvalorizada. No entanto, ao ler seu e-mail fico com a impressão que toda sua vida, ambições e desejos você deixou na mão dele e pouco tomou para si própria as rédeas do que quer.
            Por exemplo, você disse que ele nunca levou a sério o seu interesse pela música, mas não é ele quem tem que levar isso a sério, é você! O desejo é seu e se ele considera isso ou não pouco importa. Parece que você quer que ele faça algo por você ou que funcione por você. Se você o coloca no lugar daquele que tem que realizar os seus desejos fica mesmo em maus lençóis.
            Como você mesma reconhece são 18 anos de casamento e partindo do que você fala, são anos infelizes. A questão é o que você fez para si nesse tempo todo? Se sente que o casamento é algo que não te satisfaz você não é obrigada a ficar nele para sempre. Se vocês só estão convivendo juntos sem viver realmente um casamento está na hora de repensar o que está fazendo da sua vida, bem como o que quer daqui para a frente.
            O que não dá é ficar esperando que ele mude, que ele passe a te realizar ou a lutar pelos seus sonhos e ambições. Isso terá que ser um movimento seu e só seu. A nossa felicidade é algo que jamais podemos colocar nas mãos de quem quer que seja. Quem faz isso cai mesmo na infelicidade. E lembre-se: não importa o que ele quer que você seja ou faça, mas o que você quer. Isso não pode, jamais, ser esquecido.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Errar é fundamental e não uma tragédia

       
      As pessoas, de forma geral, ficam com medo de cometer erros. Realmente, há erros que são bastante danosos, que trazem prejuízos, mas viver sem errar é algo impossível. Aliás, não. É até possível viver sem errar, porém, apenas se alguém se “paralisar”, procurar não viver nada. Como já disse Albert Einstein “Uma pessoa que nunca cometeu um erro nunca tentou algo que seja novo”.
       ​É como dizer que um time de esporte qualquer é maravilhoso porque nunca perdeu um jogo sequer, mas quando se olha mais de perto vê-se que nunca perdeu porque nunca jogou nenhum até agora. Quando nos imobilizamos, quando procuramos não viver, a chance de não cometermos erros é bem grande, mas por outro lado não vivemos nada também.
     ​É muito comum, infelizmente, que inúmeras pessoas deixem de fazer coisas em suas vidas por medo de errar em algum momento. Parece mentira, mas é verdade. Na verdade, temem não o erro em si, que não tem nada de mais, mas a frustração caso o que se propõem a fazer não dê certo ou não seja tão bom quando esperavam que fosse.  A frustação é que traz o medo e não o erro. A frustração é uma desilusão.
     ​Uma das maiores dores nesse mundo é a dor da desilusão. Quando nos propomos algo e saímos do plano das expectativas e vamos para a realidade é bastante frequente que em um dado instante a desilusão se faça presente. Todo mundo sabe disso. É impossível fazer o que quer que seja no mundo se não aprendermos a tolerar alguma dose de frustração. A realidade nos oferece muito mais frustrações do que gratificações. Sim, a vida é dura e nunca nos foi prometido um mar de rosas calmo e tranquilo.
    ​Há turbulências e uma hora ou outra vamos cair. Isso faz com que algumas pessoas “resolvam” tentar paralisar o máximo possível suas vidas. Vão cair menos, vão engolir menos água, com certeza, mas também não vão aprender coisas importantes em suas vidas nem ganhar experiências que venham a enriquecer e fortalecer a forma como lidam com as diversas adversidades que sempre surgem.
      ​Me lembrei de um caso que ocorreu na cidade de São Paulo ano passado. Uma criança de um condomínio estava no playground e caiu de um brinquedo, quebrando o braço. A mãe fez um escarcéu e acionou até a justiça para que o tal brinquedo fosse tirado do playground. Evidentemente que pode haver brinquedos que oferecem riscos e eles devem ser triados, ou brinquedos que necessitam de manutenção, mas não era nenhum desses casos. A criança simplesmente caiu e teve uma situação muito infeliz e triste, mas não tem como proteger essa criança de todos os perigos do mundo. A mãe não vai poder tirar todos os riscos que o mundo oferece e ela também não vai estar sempre presente na vida de seu filho para preservá-lo de tudo e de todos. Tirar o brinquedo não seria uma boa solução. Trancar a criança em casa e não deixa-la se levantar da cama também não seria solução. Só resta mesmo aprender com a experiência e ficar mais calejado para a próxima vez. A criança cometeu um erro lá no brinquedo, mas certamente em uma nova tentativa ela poderá estar muito mais preparada e sábia.