quinta-feira, 27 de maio de 2021

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Paixão pelo ódio



          No filme americano Bela Vingança (2020) a personagem principal é uma moça inteligente e sensível que fica tomada pela paixão do ódio. Sua única procura é pela vingança, esquecendo do principal: ela mesma. Quando alguém é dominado pela paixão pelo ódio fica cego e surdo a qualquer outra coisa e geralmente acaba sucumbindo a situações trágicas. O apego ao ódio gera ignorância e nada pode ser mais trágico do que isso.
          No enredo do filme a personagem vive uma situação, em seu passado, muito dolorosa e a injustiça que se segue torna o evento mais danoso ainda. Não é só a ocorrência do que se passou que causa dor, mas a falta de justiça e reconhecimento do quão grave e séria foi a situação. A perda e a humilhação foram tão severas que ela não consegue se desapegar do ódio que sente. Ela inteira passou a ser ódio.
          Quando ficamos apegados a alguma emoção ou sentimento podemos ficar tão identificados com eles que não conseguimos discriminar mais nada, nem a nós mesmos. A busca pela vingança passou a ser sua única ligação com o mundo e qualquer outra coisa não tinha a menor chance de se desenvolver. Confúcio, pensador da Antiga China, disse uma frase: Quando sair em busca de vingança cave duas covas: uma para seu inimigo e outra para você mesmo. Ele entendia que a vingança era um apego tão grande ao ódio que não tinha como acabar bem.
          Gandhi disse: Essa história de olho por olho acaba deixando todo mundo cego. Claro que é fácil falar sobre o quanto a vingança pode ser prejudicial, mas muito mais difícil é se desapegar dela quando ficamos identificados com o ódio que sentimos. Queremos causar no outro a mesma dor, a mesma humilhação que sofremos. O nível de violência para isso é tamanho que não há mesmo chance de terminar de forma satisfatória.
          O problema é que ficar dominado por uma emoção, seja ela qual for, nos torna escravos, e quem está escravizado não consegue ser livre, está acorrentado por alguma coisa. Quando as emoções são fortes demais elas nos aprisionam de forma assustadora. O escravo não tem a chance de viver a própria vida, pois tem de servir ao seu amo. Quando uma emoção nos domina ela se torna nosso amo, nosso mestre.
          O ódio, a emoção que dominava a personagem do filme, é algo “gostoso” de sentir porque nos faz sentir poderosos, cheios de força, mas toda esta força só leva a destruição, porque não é temperada com a inteligência e a sabedoria. Não é à toa que a ira, que vem do ódio, é considerada como um dos sete pecados capitais.
          Para não sucumbir ao ódio, não ficar escravizado por ele, só mesmo praticando o desapego. Em todas as religiões se prega o desapego, mas muitos entendem de maneira limitada esse conceito, como se ele tratasse apenas do desapego material. Na verdade, o real desapego começa primeiro internamente, no psiquismo, no desapego das nossas emoções mais intensas e primitivas. Só com esse desapego podemos verdadeiramente fazer justiça. Só desapaixonado de certas emoções podemos ser sagazes para lidar com o mundo de maneira mais eficiente. Como estamos necessitados de entender e viver isso. Precisamos aprender a escrever a nossa carta de alforria.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Como você quer viver até morrer?

 

    O prefeito licenciado da cidade de São Paulo, Bruno Covas, que tratava desde 2019 de um câncer, teve recentemente uma piora em seu estado de saúde e veio a falecer neste domingo, 16 de maio. Durante toda a situação vivida pelo prefeito vimos nele uma atitude bem favorável para com a vida. 
    Todos estamos para morrer algum dia. Essa é a grande verdade, mas apesar de sabermos disso nunca nos damos conta de nossa mortalidade. Acreditamos que temos todo o tempo do mundo à nossa frente. No entanto, quando recebemos um diagnóstico nada positivo, que nos mostra que os dias estão contados, é sempre um baque muito grande. Há muitos tipos de reações. Bruno Covas, parece, pelo que vemos na imprensa, vem reagindo com grande dignidade. Essa forma dele se relacionar com a vida e sua finitude é muito edificante para todos nós.
    Há duas maneiras de sofrer nessa vida. Uma delas é sofrer mal e a outra é sofrer com dignidade. O que vai fazer com que seja uma forma ou outra é a escolha de cada um, o que depende da maturidade de cada um. É como lidamos com o que sentimos, seja de que natureza for, que dá o tom de como vamos viver e até mesmo, sofrer.
    Pessoas recebem diagnósticos nada esperançosos todos os dias e observa-se que algumas delas reagem com grande assertividade, arrumando as pendências que porventura existam, acertando relacionamentos e vivendo cada minuto com muito gosto, aproveitando cada segundo precioso. Parece que a pessoa se transforma e vê claramente que não tem tempo a perder, tirando o melhor proveito de tudo o que for possível. Elas vivem mais nesse curto espaço de tempo até do que viveram anteriormente. Chega a ser bonito de se ver. Há toda uma tristeza, mas também toda uma alegria e prazer pela vida que encanta.
    Porém, há também outras pessoas que recebendo um diagnóstico desfavorável ficam furiosas e amargas. Sentem que algo ruim e danoso não poderia estar acontecendo com elas e acabam por ficar ressentidas. A vida, nesse curto espaço de tempo, passa a ser um fardo insustentável e tudo fica como estragado, não podendo ser aproveitado. Junto com o sofrimento de uma notícia dolorosa vem o sofrimento de uma amargura.
    Não é mesmo fácil lidar com fatos que nos tiram perspectivas e nos colocam frente à nossa condição de fragilidade. Porque é justamente essa a condição humana: fragilidade. Nos desfazer da ilusão de que somos onipotentes pode ser uma pancada feia. Contudo, como lidamos com as pancadas e tombos na vida é o que importa. 
    Sempre teremos que nos deparar com dores ao longo de nossas vidas e elas são dos mais variados tipos. Isso é inevitável. Agora, vale a pena refletir sobre como vamos sofrer nossas dores. De uma maneira digna ou de uma maneira indigna? A verdade é que escolhemos como vamos sofrer da mesma maneira que escolhemos como vamos viver. Será que tiramos o melhor da vida, aproveitando de fato? Ou perdemos tempo com coisas sem importância alguma sem nos atentarmos para o que é realmente valioso? Como você quer morrer? Ou melhor, como você quer viver até morrer?

As várias formas da violência

 


          Esses dias recebi uma ligação de telemarketing insistindo para que eu adquirisse determinado cartão de crédito. Respondi - educadamente, diga-se de passagem - que não tinha interesse. A moça então começou a falar sobre as vantagens do tal cartão como se eu não tivesse já declinado da oferta. Mais uma vez eu afirmei que não queria. Então ela perguntou se eu já tinha cartão e quando eu lhe disse que já tinha ela queria saber quanto de taxa eu pagava e quais benefícios eu tinha do meu cartão. Disse a ela que nem precisávamos estender a conversa porque eu não tinha interesse em outro cartão e agradeci a oferta. Ela então iniciou perguntas como Você gosta de viajar? Você compra on-line? Você quer receber prêmios?  E eu, mais uma vez, a lembrei que não tinha interesse em adquirir o produto. Ela não me ouvia ou fazia que não me ouvia e continuou o questionário: Você trabalha com quê? Tem seguro de vida?. Isso tudo me fez pensar nas mais variadas formas de violência que existem por aí.

          Nem sempre a violência é um embate físico ou de xingamentos, mas pode assumir várias formas. Sei que operadores de telemarketing são pagos para nos ligar e fazer de tudo para que compremos determinados produtos ou serviços, mas chega uma hora que isso se torna invasivo, inconveniente e violento. Invasivo porque nos invade em nossos momentos de trabalho, de lazer e de vida; inconveniente porque incomoda na insistência em oferecer o que não pedimos ou não queremos; e, por fim, violento, porque ataca nossa liberdade de sermos ouvidos e respeitados. Não podemos fechar os olhos para o fato de que essas ligações são, na verdade, uma forma de violência.

          Outra forma de violência a que diariamente somos submetidos é quando estacionamos o carro na rua e somos “obrigados” a pagar para que alguém fique cuidando do veículo. Tudo bem que são apenas moedas que muitas vezes damos e não farão tanta falta, mas isso é violento. A rua é pública e todos temos o direito de usá-la e não podemos tirar dela lucro sem a devida permissão legal. Se, em algumas vezes, nos negamos a pagar para que o carro seja “olhado”, podemos correr o risco dele ser riscado. É ou não violência? Na verdade, é um roubo, estamos sendo assaltados.

          Sei que muitos dos que olham carros na rua são pessoas carentes e necessitadas, não desconheço este fato tão triste, mas estamos todos desamparados: tanto as pessoas necessitadas quanto as que são obrigadas a ser roubadas. O assalto, no caso, não foi com uma arma ou ameaça direta, mas foi uma violência de qualquer forma.

          Somos constantemente submetidos às mais variadas formas de violência e muitas vezes não percebemos. É uma situação que exige que prestemos mais atenção, até porque nós também vamos exercer violências em muitos momentos sem ser, originalmente, nossa intenção. Isso tudo empobrece a qualidade dos relacionamentos que vemos dentro das famílias, do trabalho e da sociedade. Perdemos muito ao não reconhecer quando a violência, disfarçadamente, se faz presente. Desenvolver uma consciência sobre como nos relacionamos é fundamental e um trabalho de todos.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Pergunta de leitora - Descontrole



Estou noiva e desde o namoro tenho um descontrole excessivo com meu parceiro. Ele bebe muito e por conta do meu descontrole emocional bebe mais ainda. Ele já tentou se controlar mais para me ajudar e evitar brigas. Quando fico brava falo alto, xingo e até faço ameaças. Saio de mim quando ele não faz o que mando. Já terminamos várias vezes e tivemos a última briga semana passada. Acredito que meu namoro foi para o beleléu e gostaria de uma ajuda. Às vezes penso que ele nem me ama, mas, por outro lado, chego a concluir que quem não deve amá-lo sou eu. Penso assim pois, aturar o que ele atura, só sendo amor mesmo. Por favor, me ajude.

    Ele se descontrola bebendo excessivamente, você se descontrola xingando e falando alto. Os dois, parece, estão fora de controle e acabam se usando para justificar o descontrole. Assim você fica presa a ele e ele a você. O que está difícil, aparentemente, é vocês dois assumirem a responsabilidade pela própria vida.
    O que será que sustenta essa relação? Será que há amor envolvido de fato, como você se pergunta, ou se trata apenas de um usar o outro para não crescer? O que será que vocês querem estando juntos? Enquanto essas questões não forem pensadas e avaliadas fica difícil saber com clareza sobre para onde anda esse relacionamento.
    Nem todo namoro é um namoro de fato. Há pessoas que ficam juntas para alimentarem suas angústias e manterem seus modos de vida. Sim, isso é bastante comum. Não é à toa que vemos tantos relacionamentos conturbados e até doentios por aí. Afinal, não é só o amor que une duas pessoas, mas também o ódio, o medo, a dependência e muitos outros elementos empobrecedores. Há relacionamentos e relacionamentos e saber o que os une é importante para compreendermos a situação que vocês vivem.
    O que você precisa é do saber que a análise pode te proporcionar. O saber do autoconhecimento. Enquanto você não compreender o que te move e o que te faz insistir nesse relacionamento e nesse estilo de vida, de nada adianta se perguntar sobre o relacionamento em si. As respostas que você busca estão dentro e não fora. O primeiro passo, que foi me escrever e contar um pouco do que você vive, você já deu, agora falta seguir em frente e ousar abrir as portas para o desconhecido que há em você. Assim não precisará mais “sair de você”, mas encontrará em você mesma a direção que precisa tomar na vida.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Não dá para ser nômade de si mesmo



    No filme Nomadland, vencedor do Oscar deste ano, vemos a história de uma mulher em seus sessentas anos que, após o colapso econômico da cidade em que vivia - e também por causa de uma dor pessoal - passa a viver numa van e na estrada, levando um tipo de vida nada convencional, como uma nômade. Muitas outras pessoas vivem como ela e todos são marginalizados, revelando as dificuldades que enfrentam por seu estilo de vida peculiar. Há duas maneiras de se entender a história dessa personagem do filme. Uma é vê-la como alguém que é colocada à margem da sociedade pelas falhas dos sistemas econômicos e sociais. Uma segunda maneira é pela ótica do desespero de alguém que não consegue residir dentro de si, mas pode apenas viver fora, de um lugar ao outro, sem nunca poder parar em um algum local.
    ​Não vou falar aqui do quanto há toda uma falta de amparo socioeconômico a essas pessoas, até mesmo naquelas sociedades consideradas desenvolvidas. Sim, há muitas falhas que acabam criando situações muito dolorosas e pessoas que acabam sucumbindo em muitas adversidades injustas. Porém, vou me deter no aspecto do psiquismo da personagem, que reflete também como muitas pessoas mundo afora vivem como nômades de si próprias.
    O problema não é viver de forma nômade. Aliás, muitos povos têm esse costume e faz parte de suas culturas. A questão passa a ser um problema quando internamente vivemos de forma nômade, sem uma casa interna. Porque no mundo lá fora podemos morar em vários lugares e sair de um ponto para ir a outro, contudo não temos como sair de nós mesmos, não temos como nos deixar para trás.
    A gente pode até ir morar na Estação Orbital Internacional, ou seja, sair do planeta, mas não temos como deixar a nós mesmos. Nossa mente e tudo o que sentimos e somos vai conosco. Não há lugar onde podemos nos esconder de nós mesmos. Só que muitas pessoas tentam viver assim, tentando fugir de si próprios. Isso só leva a um desespero sem fim.
    No filme a personagem vivia muitas situações, mas um olhar mais detalhado mostra que as situações ficavam todas fora dela. Parece que ela só podia sentir fora, tudo aquilo que se passava ao seu redor, mas o que ela sentia dentro parecia ser de uma dor tão atroz que ela não suportava. Quanto mais a dor interna estava perto de irromper mais necessidade ela sentia de ir para outro lugar. Assim, a “mudança” externa se sobrepunha ao que ela sentia por dentro. Talvez ela não fosse verdadeiramente nômade, mas estava sempre em fuga.
    Quem vive em fuga nunca tem descanso e precisa constantemente de “distrações” externas para não ter que se deparar com o que sente internamente. Quanto mais olhamos para fora maior o desespero que carregamos. Viver sem lar é aterrador, mas precisamos entender que o lar não é uma coisa fora, concreta, mas um espaço interno que nos permite sempre o acolhimento. Não dá para viver nômade de si mesmo.