domingo, 7 de agosto de 2022

Você é livre?

 

                                                   Foto de Basil James 

Aquilo que a grande maior parte das pessoas acredita que seja liberdade, não o é de fato. Há inúmeras pessoas clamando por aí que são livres, mas diante de uma análise mais detalhada é possível ver que elas de livre não têm nada, porém estão aprisionadas, e o pior nem percebem isso. Enquanto o que for ser livre não é entendido nem vivido, não há a menor chance de se haver liberdade.

          O que muitos pensam que seja liberdade é poder dizer: “Só faço o que quero, a hora que eu quero, do jeito que quero” ou “Falo tudo o que me vem à cabeça, sem ligar para nada, sou assim mesmo”. Todas essas coisas tem mais a ver com prisão e não com a real liberdade.

          Quando digo que esses tipos de comportamento está mais relacionado com aprisionamento me refiro ao fato de que a pessoa acha que se fizer o que quer, a hora que quer e como quer ela é livre, mas ela nunca esteve tão presa. Está capturada a uma ditadura interna que exige que ela reaja apenas dessa maneira. Quem só faz o que deseja na forma que deseja está preso à ditadura do desejo que precisa ser realizado a qualquer custo. Como alguém poderia ser livre assim? Ninguém é realmente livre quando há algo que nos obriga a fazer alguma coisa de uma determinada forma ou ser de um jeito ou outro sem espaço para reflexão e mudanças.

          No fundo, quando as pessoas ficam submetidas ao próprio desejo, seja ele qual for, sem nenhuma consideração, está havendo uma repetição, uma compulsão para se ser assim. Compulsão é quando alguém age não baseado pela própria escolha, mas porque segue um imperativo do qual não consegue se desvencilhar. Todo compulsivo está preso, aprisionado à lei do desejo que é mais forte do que a própria pessoa.

          “Sou assim mesmo, só sei fazer assim”, são formas que mostram o quanto uma pessoa está presa à uma determinada fôrma, sem condições de ser diferente dependendo do contexto que está vivendo. E mais, quem acredita que precisa sempre se satisfazer, que precisa ser gratificado na vida em todos os momentos está preso à necessidade de gratificação, de ter o próprio desejo atendido sem demora. Não consegue suportar a menor frustração que vier. Em outras palavras, não consegue suportar nem lidar com a vida.

          Liberdade, no entanto, implica haver possibilidade de escolhas. Quando alguém pode decidir o que quer na vida. Não há mais submissão a satisfazer isso ou aquilo, mas há uma mente que pode pensar o que realmente lhe serve. A pessoa que é livre não fica aprisionada a ter que se satisfazer em todos os momentos, custe o que custar. Pelo contrário, entenderá que há determinados custos que se faz melhor evitar para se viver melhor. Compreenderá que nem tudo se pode e que saber escolher é fundamental para decidir como será a qualidade de vida que quer ter.

          Resumindo, para se ser livre é preciso lidar antes com a responsabilidade sobre as próprias escolhas. É saber aonde alguém quer chegar e o que quer ser. Não é se imobilizar tendo que satisfazer desejos tirânicos que alguém torna-se livre, contudo é se permitindo pensar e escolher o que se quer.


O que importa é o que não sabemos

 


A escritora Clarice Lispector disse “Com todo o perdão da palavra, eu sou um mistério para mim”. Que corajosa! Quando admitimos que somos um mistério para nós mesmos, quando nos damos conta que não somos assim tão donos do que se passa em nosso interior temos como aprender, e com isso, crescer. Uma das piores atitudes que alguém pode ter consigo próprio é achar que já sabe tudo sobre si e acreditar que não há o que descobrir em si mesmo.

          A pessoa que se vale da arrogância, por exemplo, acredita que sabe tudo o que há para saber sobre si própria. Ela até pode saber bastante coisas sobre assuntos externos dos mais variados tipos, mas é uma completa ignorante de si mesma. Desconhece o que a move, o que necessita, o que pode e o que não pode, etc. Sobrevive, mas não vive e desperdiça vida. Isso ocorre porque o mistério incomoda, sempre nos conduz em direção ao desconhecido, a tudo aquilo que não sabemos, não entendemos e não temos referência. Há pessoas que tentam não olhar para aquilo que desconhecem e assim se limitam.

          A tecnologia que hoje dispomos que permite até mandar telescópios para a vastidão do espaço sideral a fim de colher informações que nos ajudem a expandir a ciência só foi possível ser desenvolvida por ousarmos caminhar em direção ao desconhecido. Assim se faz ciência: procurar entender algo que desconhecemos. Ninguém faz ciência fechando os olhos e fingindo que sabe tudo, mas é justamente admitindo que não sabe. Aquilo que não se sabe pode ser pesquisado, pode vir a ser conhecido. O cientista, os pesquisadores, são antes de tudo, ignorantes que percebem sua ignorância e vão atrás de saber alguma coisa. Vão atrás de descobrir (tirar a coberta) daquilo que estava acobertado e por isso mesmo não sendo visto.

          Se alguém descobre as coisas na área da ciência, tecnologia, começa a ver e a procurar entender aquilo que antes não se fazia a menor ideia. A consequência é que com isso há uma expansão. O universo torna-se maior e surgem muito mais mistérios a ser compreendidos. A evolução cientifica pode cada vez mais crescer. Só que enquanto a ciência está voltada para o externo e o mundo material precisamos também, cada vez mais, de uma ciência voltada para o interior, para a nossa vida mental.

          Aí que entra saberes tais como a psicanálise. Quanto mais internamente voltamos o nosso olhar, mais mistérios vamos nos deparando dentro de nós. Admitir isso de que somos um mistério é fundamental para que começamos a nos mover em direção a tudo o que não sabemos e que faz parte de nós. Podemos assim descobrir (tirar a coberta) aquilo tudo que nos estava escondido sobre nossa natureza, pensamentos, desejos, etc. E quanto mais sabemos sobre nós, mais podemos lidar com o que somos. Estar em análise é isso: tolerar o próprio mistério para que muitas coisas possam ser conhecidas. Não que vamos desvendar todos os mistérios. Aliás, muito deles nem mesmo chegaremos perto de compreender, entretanto se podemos suportá-los poderemos ir nos expandindo e alargando todo esse universo que existe dentro de nós. Uma jornada muito interessante e necessária.

O que forma um psicanalista?

 

                                                           Unsplash


Não existe em nenhum lugar do mundo uma universidade com o curso de psicanálise. Não há uma graduação em psicanálise e muitos estranham tal fato. O que forma psicanalistas são os cursos de formação em psicanálise. Depois de graduar-se, geralmente em psicologia ou medicina, o interessado procura um desses cursos de formação para se aprofundar na psicanálise e ter mais embasamento. No entanto, há vários grupos de formação dos mais variados tipos o que faz com que seja uma verdadeira bagunça e muitos deles não são verdadeiramente sérios, o que prejudica tanto a formação do profissional quanto os futuros pacientes que serão atendidos por esses profissionais.

Há grupos de formação em psicanálise até mesmo ligados à determinadas denominações religiosas, o que configura uma loucura. O profissional psicanalista que vai atender alguém precisa estar descontaminado de qualquer ideia pré-concebida ou expectativa do que seja certo e errado. Como ele ouvirá seu paciente de forma livre se tiver por detrás toda uma bagagem cheia de dogmas e conceitos rígidos de como as coisas têm que ser? A psicanálise não “catequiza” nem “endireita” ninguém e tampouco consola alguém. Muitos desses grupos de formação vinculados à religião estão mais preocupados em mostrar o caminho (que eles acreditam ser o único possível) ao invés de ajudar o paciente a ser ele próprio, mesmo que ser ele próprio contrarie o que pregam as normas religiosas.

Infelizmente, o número de grupos de formação que não tem seriedade alguma é muito grande. Então, por que não criar cursos de graduação em psicanálise nas universidades? Todos submetidos ao ministério da educação para acabar com toda essa confusão? Não é tão simples assim.

Nas faculdades de psicologia e outros cursos até se ensinam técnicas e teorias psicanalíticas, mas não é isso que forma um psicanalista. É a sua formação pessoal que constitui não só o conhecimento teórico da psicanálise, de suas técnicas, mas acima de tudo de sua própria análise pessoal. É se colocando em análise várias vezes por semana durante anos que alguém se torna e vai se tornando psicanalista. É nessa relação que se dá na própria análise pessoal que o candidato a psicanalista vai se libertando de seus entraves e reduzindo seus conflitos que o impedem de viver de maneira mais espontânea. É no divã de sua própria análise pessoal que acontece o vir a ser psicanalista. Por mais que alguém saiba sobre as teorias isso é apenas conhecimento intelectual, mas é à medida que alguém vai se permitindo viver seus próprios conteúdos e aprender a lidar com eles de maneira mais eficiente que algo realmente acontece.

Essa análise pessoal não tem substitutos. Não que ela seja milagrosa e o psicanalista estará isento de qualquer conflito ou dificuldades. Claro que não. Eles continuarão existindo, mas se a análise for relativamente satisfatória a pessoa poderá lidar consigo de maneira mais proveitosa e adequada, sem tantos tropeços e engasgues. Brincando com as palavras se diz que em psicanálise não existe curso, mas existe percurso. É a jornada que o profissional se coloca que conta e esta deve ser procurada em grupos de formação sérios, realmente comprometidos. Uma universidade não teria como “verificar” e validar a formação de todos os seus graduandos, já que não se trata de uma verificação intelectual e racional.  Num grupo de formação, por exemplo, leva-se anos para alguém ir se tornando psicanalista, um tempo muito mais comprido que qualquer graduação poderia oferecer. Psicanálise, para ser eficaz, não é algo que simplesmente só se estuda, mas algo que se vai “assimilando”, “digerindo” para que possa realmente se aprofundar e fazer sentido.

Mesmo dentre os vários grupos de formação têm muitos que não dão o devido valor a análise pessoal, concentrando-se mais nas teorias e técnicas, formando profissionais que até podem conhecer as teorias, mas não fazem a menor ideia do que elas se tratam na verdade. Fica algo intelectual longe da experiência, longe do sentido, portanto, inútil. O único lugar possível que pode “formar” um psicanalista é o divã em que ele se permite se escutar e aprender sobre si mesmo na companhia de outro psicanalista que já tenha antes, ele próprio, trilhado a sua jornada. 


Só podemos esquecer quando lembramos

 


Aquilo que não pode ser lembrado não pode ser esquecido. Na vida se faz importante esquecermos determinadas coisas. Não podemos e não devemos carregar tudo em nossas mentes. Tal como uma casa precisa ser limpa e organizada, nós também. Esquecer é importante em certos momentos, mas entendendo que esquecer não implica em apagar da memória ou fingir que não existiu, porém requer que seja desapegado. Esquecer, portanto, é desapegar, não mais ficar envolvido.

          Se determinadas situações que nos provocaram emoções aflitivas e difíceis não são lembradas elas não têm como ser esquecidas, ou seja, não podemos nos desapegar delas. Como poderíamos nos desapegar daquilo que não lembramos, mas que tentamos forçosamente fingir que nunca aconteceu?

          Rememorar pode trazer dor e isso é desconfortável, contudo ao lembrarmos da dor podemos então com tempo e paciência nos desapegar dela, deixa-la para trás caminhando em frente em nossas vidas. Todavia, se não lembramos da dor, se nos negamos a se dar conta dela, a dor continua existindo e jamais é abandonada, mesmo que não se pense propriamente nela.

          Há aquelas pessoas que vivem aparentemente sem lembrança alguma de suas dores e sofrimentos, mas suas vivências ficam comprometidas e manchadas por essas mesmas dores que não são lembradas e por isso mesmo não puderam ser esquecidas. Freud, criador da psicanálise, escreveu um artigo cujo título é “Recordar, repetir e elaborar” (1914). Nesse texto vemos que se não recordamos e se não vivenciamos novamente algumas dores dentro de nós não temos como elaborar o que nos machucou e ficaremos sempre presos.

          Nesse belo trabalho que nos permite ver como funcionamos em muitos aspectos, Freud afirmou que aquilo que não é permitido ser lembrado em nossas mentes continua existindo não como lembrança, mas como ação, ou seja, fica fadado à repetição sem nem mesmo perceber que está repetindo a dor que queria tanto se ver livre. Isso tudo é muito triste e até grave porque desenha um cenário desolador de repetições sem fim, sem lembranças e que trazem muitas angústias. Estar constantemente se repetindo, sem poder seguir adiante, é uma prisão amarga.

          No filme Imperdoável (2021) da Netflix algo aconteceu entre duas irmãs que não nos é inicialmente revelado às claras. Sabemos pouco do acontecido, só através de flashes sem muita nitidez, mas isso afeta muito em como a irmã mais nova vive a vida. Na época do acontecimento ela era muito pequena e não se lembra da situação que mudou sua vida completamente, mesmo assim, mesmo não tendo memória ela sente que algo continua a ‘atrapalhar’ a forma como ela se relaciona com a vida e com os outros. Havia algo que ela não sabia o quê que não tinha como ser elaborado e esquecido para ela então poder continuar em frente.

          Situações menos graves como esta descrita no filme mencionado acima acontecem em nossas vidas e pedem para serem lembradas para daí podermos esquecer. Quando algo é elaborado dentro de nós temos a chance de relegar então para o esquecimento aquilo tudo e se abrir às novas possibilidades que nos apresentam.

         


Que tipo de sujeito você é?

 

                                                 Foto de Mathieu Stern 


Para ser possível uma vida saudável e sã é necessário, primeiro, aceitar como funcionamos, conhecer nossa natureza, para então ser capaz de conduzir a própria vida de uma maneira eficiente. Infelizmente, não é isso o que acontece e as pessoas terminam por viver vidas muito sofridas e cheias de complicações desnecessárias. O que acontece é que na maioria das vezes as pessoas não lidam com a vida real, mas com o que elas acreditam que a vida deveria ser.

Olhemos como tratamos nossos corpos, nossa saúde física. Aliás, cuidar do próprio corpo deveria ser uma atividade básica, algo sem maiores hesitações, mas não é bem isso o que ocorre. Sem um corpo minimamente sadio fica muito difícil viver, no entanto tratamos nossos corpos de maneira cruel como se eles pudessem receber quaisquer tipos de maus tratos e nunca ‘enguiçarem’. Já repararam para ver como tratamos nossos corpos físicos?

Comemos além da conta e de maneira nada saudável, bebemos como se não houvesse amanhã, tomamos remédios de forma indiscriminada frente qualquer desconforto, dormimos pouco e mal, etc. Se examinarmos bem nós sobrecarregamos nossos corpos físicos violentamente e ainda por cima esperamos que eles não reclamem, que não deem nenhum tipo de problema. Em outras palavras, somos nosso próprio carrasco. Isso não é qualidade de vida.

Se fazemos assim com nossos corpos, que é algo de natureza bem concreta, imagina o que não fazemos com nossas mentes, que é de natureza bem sutil e subjetiva, ou seja, bem mais difícil de se ver. As pessoas vivem como se não tivessem mentes e por isso mesmo não possuíssem nenhuma responsabilidade com suas vidas emocionais. Elas até “sabem” que têm mentes, mas não se dão conta e nem se responsabilizam por sua subjetividade. Isso faz com que elas se entreguem a fiquem presas a variados tipos de compulsões, caiam nos mesmos erros e equívocos, sofram por coisas que poderiam ser evitadas. Em resumo, vivem mal e fazem más escolhas.

Com tudo isso é de se esperar que a vida vá tomando caminhos que vão levando a uma grande infelicidade e insatisfação. As pessoas sentem-se constantemente infelizes e ficam desesperadas por buscar prazeres que venham a ‘compensar’ a dor e medo que sentem. E quanto mais prazer as pessoas vão correndo atrás de forma inconsequente mais elas vão se perdendo de si mesmas e mais cria um ciclo vicioso que leva muitos a não ter mais qualidade de vida alguma.

Se não conhecemos como funcionamos, nossas naturezas, nossos corpos e mentes, não haverá a menor possibilidade de vivermos bem. Prazer é importante para a vida, mas qual tipo de prazer? Aqueles que realmente nos levam a ser nós mesmos, a crescer e se expandir ou aquele prazer que nos leva a nos perder? Quando vamos aprendendo a ter contato com nossas reais necessidades, quando podemos ver de verdade a nós mesmos, temos a possibilidade de escolhermos melhor o que queremos e escolhemos melhor como nos tratamos e como nos conduzimos. Isso, sim, é ser sujeito da própria vida.