Ikkyu-san tornou-se monge muito cedo. Era considerado sábio e as pessoas, por inveja, sempre tentavam tirá-lo de seu equilíbrio. Certo dia, sabendo que ele gostava muito de peixe assado, um senhor o convidou a orar em sua casa. Terminada a oração, ofereceu a ele uma refeição, como era de praxe, e colocou o peixe saboroso e fragrante bem à sua frente. Ikkyu-san fez rapidamente a prece de agradecimento e começou a comer o peixe. As pessoas à sua volta comentavam: “Mas é um monge. Está quebrando o preceito de não matar. Isso não está certo”. Ikkyu-san continuava comendo alegremente. Até que alguém, não aguentando mais, falou em voz alta: “Monge, o que é isso? Comendo peixe?”. E Ikkyu, sem titubear, respondeu: “O peixe está virando monge.
Na parábola acima a gente vê o quanto as pessoas, de forma geral, estão muito mais preocupadas com a aparência do que com o conteúdo. Vivem preocupadas com a imagem que aparentam e em como são vistas pelos demais. Às vezes, esta preocupação se torna até mesmo uma ansiedade intensa, que passa a dominar toda a vida. Com isso perdem muito tempo e energia procurando aparentar o melhor possível e não se dedicam em nada ao desenvolvimento interno.
Quanto mais preocupada com as aparências é uma pessoa, mais rapidamente ela julga os outros. Com mais crueldade ela separa “quem presta de quem não presta”, segundo seus padrões. A vida, para essas pessoas, não se trata de possibilidades e descobertas, mas de regras a serem seguidas, de dogmas incontestáveis a serem obedecidos. Como dá para imaginar, a vida fica limitada, e como há gente assim!
Contudo, para aqueles que se permitem aprender com a vida e as experiências, há a chance de se libertar e viver mais dignamente. Para o monge acima, por exemplo, o peixe estava virando ele mesmo e não ele virando peixe. Somos o que comemos, mas também ocorre justamente o contrário: aquilo que comemos também vira o que somos. E aí que vem a questão mais importante para pensarmos: no que transformamos tudo aquilo que entra em nós? No que nossas experiências se transformam dentro de nós?
Há duas possibilidades: a primeira é quando as experiências, os eventos que vivenciamos, que muitas vezes são difíceis e sofridos, acabam entrando em nós e não os transformamos. O resultado é que acabamos nos identificamos com tudo aquilo e “viramos” as dificuldades. Claro que assim a vida se torna pesada, um fardo do qual queremos nos livrar rapidamente. Só podemos lamentar e nos sentir as piores criaturas do mundo. Nesse caso o monge se tornaria o peixe. O peixe não foi digerido, mas digeriu o monge.
A segunda possibilidade é bem mais auspiciosa. Nela, os acontecimentos, mesmo os dolorosos, são digeridos internamente, tornam-se matéria prima para o nosso crescimento. O peixe vira monge. Ele passa a ser digerido (desconstruído) e se transforma em outra coisa maior. Desta forma o peixe não fica entalado no meio do caminho, mas passa a ser parte de algo que foi transformado para melhor.
Quem cresce faz isso psiquicamente. As experiências de vida são matérias primas que são “quebradas” para poderem ser processadas e absorvidas. Os acontecimentos ao longo da vida ficam disponíveis para serem bem usados. E somos nós que decidimos isso: viramos o peixe ou o peixe vira nós?