segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A pipa, o sonhar e o tombo

 
     Aconteceu em Taiwan no fim de agosto algo que me fez pensar. Era um domingo e um festival ocorria num parque onde se encontrava muitas pessoas. Uma menina de três anos estava perto de uma pipa gigante que estava prestes a alçar voo. Quando uma rajada de vento chegou subitamente e elevou a pipa os fios se amarraram na cintura da pequena menina e a fizeram subir numa altura de 30 metros por 30 segundos. Parece um tempo curto, mas imagina o desespero da garota ao ser arrebatada para cima de forma tão brusca e inesperada e numa altura equivalente a um prédio de 10 andares? Deve ter sido muito angustiante. O pior ainda podia acontecer caso o vento parasse repentinamente, o que faria com que a menina caísse com tudo e tivesse uma batida muito violenta. Felizmente, o vento colaborou e foi amainando aos poucos, o que tornou possível que a menina fosse baixando devagar até o chão. Fora o susto, imenso, ela não sofreu machucados sérios.
     O que fiquei pensando desse incidente me levou para outra dimensão. A dimensão mental. Muitas pessoas temem entrar em contato consigo próprias, temem abrir espaço para descobrir suas emoções e fantasias. Insistem em evitar o menor contato que seja com a própria mente. O que povoa nossa mente são nossas fantasias e desejos, nossos anseios e pensamentos. Ocorre que tememos ser içados por tudo o que se passa no nosso mundo interno.
    É claro que corremos riscos quando uma fantasia nos surge. Ela pode tanto nos levar para algo que nos enriqueça, nos faça expandir como também fazer a gente perder o chão de forma abrupta e sem o menor cuidado. Podemos nos espatifar. Há essa possibilidade, porém, podemos usar a nossa mente para nos proteger dessas situações.
   Usar a mente implica em abrir espaço para as fantasias e desejos e também pensar sobre eles. É uma mistura de sensibilidade e bom senso. Um equilíbrio. Sem equilíbrio nossa vida mental fica comprometida. Nossas fantasias podem nos abrir novas possibilidades, o que cria novas formas de se relacionar com o mundo, de crescer e de trazer mudanças. Sem fantasias não seríamos reconhecidos como ser humano, já que ela nos possibilita viver esse lado humano. Sem fantasias não existiriam obras de artes, músicas, literatura. Sem fantasiar não construiríamos tecnologia cada vez mais eficiente, não desenvolveríamos a culinária. Se alguém não tivesse sonhado antes, não haveria medicina de ponta, engenharia tão eficaz e por aí vai. Deu para ter uma ideia.
    Todavia, a mesma fantasia que cria tanta coisa boa pode tal como na história da pipa acima nos levantar repentinamente e fazer a gente se machucar feio. Pode nos levar a um tombo com consequências catastróficas. Perder o chão com a fantasia pode ser trágico. Isso significa que precisamos destruir todas as pipas? Não mais sonhar e deixar de levantar voo? Não, apenas precisamos aprender a lidar com nossas fantasias, não nos enredarmos nela a ponto de nos colocar em risco. Podemos continuar empinando as pipas de nossas mentes, mas sem precisar estar amarrados nelas. Nós é que a conduzimos; não precisamos ser conduzidos por elas.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O cabelo e o coração


     
  Um antigo provérbio chinês diz uma verdade para refletirmos: “Todos os dias arrumamos os cabelos, por que não o coração?” Aquilo que está fora, no mundo concreto, é fácil de ver e avaliar. Conseguimos, com muita facilidade e rapidez, mensurar o quanto estamos bem em nossa imagem. Seja nossa imagem física, nossa imagem social ou profissional. Estamos constantemente arrumando e ajeitando essas imagens e passamos a impressão de que sem elas não seríamos ninguém. 
    Confiamos muito nas imagens. Cuidamos com muito mais afinco do que aparentamos ou queremos aparentar ser do que realmente somos. Como já diz um ditado antigo “Por fora bela viola, por dentro, pão bolorento”. Entre aquilo que somos por dentro e aquilo que aparentamos externamente pode existir um abismo. Há muita valorização em cuidar daquilo que vemos e pouca valorização em cuidar daquilo que está invisível aos olhos, mas que molda quem somos. A questão, então, não é parar de cuidar de um e passar a cuidar do outro apenas, mas refletir sobre como vivemos, como nos relacionamos com o mundo e, principalmente, conosco mesmos. 
     Falar isso parece uma coisa tão óbvia que até vira clichê, porém as coisas mais óbvias são as mais difíceis. Sabemos muito sobre o que precisamos na vida, mas pouco vivemos realmente esse conhecimento. Esse parece ser um dos maiores entraves das pessoas: saber fica numa dimensão mais superficial, é algo que podemos TER. Já viver é algo que fica numa dimensão mais integral da vida, se trata do SER. 
    Ter conhecimento é algo que alimenta o ego, por assim dizer. É algo que enche a pessoa e que pode ser exibido. É inegável a quantidade de pessoas que tem bons conselhos e pensamentos inteligentes. Ter o conhecimento do bom senso é algo que a maioria das pessoas possui, mas mesmo assim encontramos tanta gente infeliz e miserável, tropeçando nos mesmos repetidos equívocos e se sentindo vítimas da vida. Essas mesmas pessoas estão repletas de pensamentos virtuosos e belos e os proclamam com gosto. Aparentemente, são todas muito sábias e iluminadas, mas essa imagem não sobrevive a um olhar mais atento e aprofundado. Elas estão bem “arrumadas” por fora, mas em seus íntimos estão bem desajustadas. Como aquele produto que é muito ruim, mas vem dentro uma embalagem muito bela e sedutora. Quem já não comprou algo assim? 
   A publicidade sabe muito bem disso e vem se valendo do quanto valorizamos mais a aparência do que o conteúdo. A má publicidade, claro, sabe seduzir o consumidor. Atrai com uma imagem, mas esta não se sustenta por muito tempo. A verdade é que valorizamos mais a sedução do que a verdade. Os cabelos são muito sedutores, podem ser vistos facilmente e podem ser manipulados de forma a enganar. Todavia, o coração que aqui mencionamos do provérbio chinês é o que está dentro, o subjetivo, e que sustenta de fato uma pessoa e a maneira como ela vai se ligar ao mundo e aos outros. 
    Quando não mais nos enganarmos, quando não mais sermos movidos pela sedução pura e simples, poderemos cuidar dos cabelos tanto quanto cuidamos do coração. Aí sim, seremos verdadeiramente pessoas inteiras.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O narcisismo que mata

     Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) um grande número de pessoas não realiza exames de rotina para ver como anda a saúde e, com isso, se colocam em risco desnecessariamente. Muitas doenças e complicações na saúde poderiam ser facilmente tratadas se detectadas com antecedência. O check-up é um ato de cuidado para consigo próprio, mas vemos que esse ato de amor próprio não é tão frequente assim.
​     O que explica o fato de uma pessoa se negar a realizar esses exames para cuidar da saúde? Apesar de haver justificativas, como questões de tempo e esquecimento, na verdade o que ocorre é que é pura negação. Ou alguém realmente acredita que não tem tempo para cuidar de si mesmo? Ou que esqueceu de olhar para a própria saúde?
​     A negação é um mecanismo de defesa que faz com que evitemos entrar em contato com realidades dolorosas. Às vezes, queremos que a vida e o mundo sejam como queremos ou como achamos que deveriam ser e não suportamos lidar com a realidade que encontramos e que bate de frente com nossos desejos. Viver sob o mecanismo da negação é algo que nos deixa em perigo. 
​   Estamos constantemente criando um mundo fantasiado. Queremos crer que somos infalíveis e poderosos. Desejamos que fatos ruins e desagradáveis, como doenças ou qualquer outra coisa que nos contraria, nunca nos acontecerá. Negamos a realidade porque não toleramos entrar em contato com verdades que nos aborrecem. Preferimos viver num mundo de faz de conta, onde tudo se passa conforme queremos. O problema é que não lidar com a realidade é sempre um mau negócio. A realidade existe independentemente do nosso desejo. 
​   Quando vemos essas pessoas que têm condições de realizar exames de check-up preventivos, mas rejeitam fazê-los, estamos vendo pessoas que temem lidar com a realidade. Receiam olhar para si mesmas e encontrar algo que as descontente. Algumas até repetem aquele antigo ditado “quem procura, acha”, e com isso pensam, então, que se não procurarem não vão achar nada de ruim. Como se a vida funcionasse assim. Chega a ser uma atitude infantil se valer disso.
​    Se suportamos a verdade podemos fazer algo. Se alguém se depara com algo preocupante em sua saúde e se puder tolerar isso poderá buscar meios para tratar, para cuidar do que se passa. Ao lidar com a realidade temos mais poder para tomar decisões eficientes, mesmo que não sejam fáceis. A verdade pode, muitas vezes, ser dolorosa, mas é infinitamente melhor lidar com o que é real do que se perder em fantasias. A fantasia, nesses casos, nos paralisa porque nos faz acreditar que somos invencíveis, enquanto a realidade nos mostra que somos apenas parte da natureza do mundo que precisa aprender a se cuidar apropriadamente.
​    Não fazer exames de rotina é uma forma de manter o narcisismo. Já lidar com a realidade é abrir mão de uma autoimagem onipotente, aceitar as feridas no nosso narcisismo e buscar formas de se auto preservar. Alguém que consegue abrir mão de uma fantasia para viver a realidade é alguém que pode crescer e se desenvolver verdadeiramente. Só lidando com a realidade é que podemos amadurecer.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Acendam as luzes amarelas!



     Entramos no mês em que todo profissional da saúde mental fala sobre o Setembro Amarelo. Internacionalmente, a data de 10 de setembro é o Dia Mundial da Conscientização sobre a Realidade do Suicídio e sobre como este poderia ser evitado se tratado de forma apropriada. A ideia da campanha do Setembro Amarelo é estampar vários lugares com a cor amarela para que esto chame a atenção de todos para a destruição que o suicídio provoca. Segundos dados do site www.setembroamarelo.org.br o suicídio é um sério problema de saúde pública que mata um brasileiro a cada 45 minutos e 1 pessoa a cada 40 segundos no mundo todo. O mais triste é que, segundo o mesmo site, 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados. No entanto, faltam políticas públicas de qualidade que valorizem a saúde mental.
          Muitos textos, artigos e estatísticas sobre o suicídio são vistos durante o mês de setembro e, ainda assim, o assunto é um tabu, ou seja, pouco encarado. Seja por motivos religiosos, negação ou medo, o suicídio ainda é algo que evitamos olhar mais de perto e, por isso, discutimos pouco. No entanto, já se tornou quase conhecimento geral que quem se mata quer matar, na verdade, a dor que sente e com a qual não está conseguindo lidar de uma maneira eficiente. Agora, existem várias formas de uma pessoa se matar e é sobre elas que gostaria de chamar atenção aqui.
          Existe o suicídio que nos causa aquele impacto violento de uma pessoa tirar a própria vida. Um ato que traz imensa dor também para quem está em volta. Não há dúvidas de que esta é uma das situações mais impactantes que podem existir. Entretanto, há outro tipo de suicídio que também ocorre e que é ainda menos percebido e, daí, ninguém acaba acendendo uma luz amarela de alerta.
          Há pessoas que vão desistindo de viver aos poucos. Elas podem até não acabar cometendo o ato de tirar a própria vida de fato, mas vivem uma vida que não pode mais ser chamada de vida. Viver torna-se para elas um peso, uma atribulação que não traz nenhum prazer. Vão ficando amarguradas, a vida fica cinza e sem nenhuma cor e sabor. Elas continuam andando, pagando suas contas, mas não estão vivendo propriamente. Estão apenas subsistindo.
          Quando não vivemos, quando não nos desenvolvemos o quanto poderíamos estamos também cometendo um tipo de suicídio, pois estamos tirando a vida que poderíamos vir a ter. Ceifando nossas possibilidades e potencialidades. Isso é grave. Às vezes, nem percebemos que estamos fazendo isso, achamos que está tudo bem, mas estamos muito mal. Há pessoas que nem sabem mais o que é vida e a substituem por atitudes e comportamentos que as afastam cada vez mais das possibilidades que poderiam desenvolver.
          Uma pessoa que bebe muito comete um tipo de suicídio, mesmo que não venha morrer disso ou que leve muitos anos para isso ocorrer. Mesmo assim ela tira a própria vida, aos poucos, a cada gole. Alguém compulsivo por drogas também se mata. Se não for a vida, mata chances de se tornar quem poderia ser. Perder tempo, aliás, é também suicídio. Porque matar o tempo é matar a vida. Quantas vezes perdemos tempo e deixamos de viver coisas tão importantes com nossos entes queridos para nos ocuparmos de outras coisas que acreditávamos que eram vitais, mas eram superficiais? Qualquer pessoa que se coloca em risco desnecessariamente, não se cuidando devidamente, comete um tipo de suicídio. Não tem para consigo um cuidado.
          Tudo isso é falta de saúde mental. Possuir saúde mental não implica em ser uma pessoa sem problemas, dores e adversidades, mas em ser alguém que possa ir criando meios para lidar com o que sente de maneira mais viva, de maneira que a vida seja preservada. Que se acendam as luzes amarelas e que prestemos mais atenção em como estamos vivendo para evitarmos o suicídio, seja ele de que tipo for.