segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Uma história assustadora



          Um dia peguei um Uber e, durante a conversa com o jovem motorista, ele contou algo que me deixou perplexo. Ele disse que havia sido chamado para uma corrida em um salão de beleza e que chegando lá duas crianças - uma menina de 7 anos e um menino de 5 (ele soube dizer a idade porque perguntou a elas) - foram até ele e perguntaram se ele era o Uber que a mãe havia chamado. O motorista perguntou aonde a mãe deles estava e a menina respondeu que estava dentro do salão de beleza e que ela havia chamado o Uber para levá-los de volta para casa, onde uma empregada os aguardava. O motorista me disse que ficou incomodado, sem saber bem o que fazer, mas acabou levando as crianças, sem a mãe nem mesmo ter saído para ver a cara de quem ia levar seus filhos. Não é uma história assustadora?

          ​Essas crianças estavam abandonadas. Crianças, como todos deveriam saber, não sabem cuidar de si mesmas e precisam de alguém que cuide delas. Está escrito até mesmo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas convenhamos que nem precisaria ser lei algo tão básico, bastaria bom senso. Pois é, o bom senso está em falta, tornou-se mercadoria rara e cenas assustadoras assim acontecem com muita frequência.
​          Fico imaginando o terror dessas crianças entrando no carro de um desconhecido, sem nenhuma referência. Mesmo que por fora elas pudessem até não demonstrar medo é óbvio que deveriam estar amedrontadas. É uma situação de grande vulnerabilidade e elas poderiam não ter palavras para descrever o que sentiam, mas não há dúvidas de que o sentimento estava lá. Qual um dos maiores medos das crianças? Serem abandonadas! E foi justamente isso que aconteceu a elas.
​      Sem alguém que cuide de uma criança como ela vai aprender a se cuidar? Aprendemos a nos cuidar quando introjetamos uma função cuidadora, quando alguém nos cuida e podemos, então, espelhar essa ação conosco. Quando somos protegidos e preservados aprendemos a nos proteger e a nos preservar. Quando somos tratados como pessoas queridas e amadas aprendemos a nos amar também. Porém, uma criança que não é cuidada fica à deriva e desamparada.
​          O sentimento de desamparo é terrível e essa mãe não faz ideia do terror que seus filhos deveriam estar sentindo e também do perigo em que ela os colocava. Parece que não há nessa família uma função cuidadora. A mãe não sabe cuidar e proteger (devido, talvez, até ela mesmo não ter sido cuidada) e as crianças vão crescer sem saber se cuidar e vão se colocar futuramente em situações de risco, pois não terão dentro delas um registro de cuidados. Se não mudarem, vão repetir com seus relacionamentos e seus filhos a mesma falha. É uma falha emocional muito grande.
         Quando uma falha desse quilate se instala é como uma cratera imensa que fica no nosso mundo interno. Um buraco que nos leva a cair muitas vezes em relacionamentos doentios, em situações empobrecedoras, em dores que poderiam ser evitadas e tudo isso cobra um preço alto demais no nosso desenvolvimento, que fica tolhido. Essa história que o motorista do Uber me contou, e que parecia ter mexido muito com ele, é só uma gota no meio de tantos abandonos e violências que existem por aí, mas ilustra bem o quanto não ter desenvolvido uma mente que pense de fato influencia esse mundo a ser o que é. Como vamos cuidar do mundo, do meio-ambiente, da boa política se não cuidamos de nós mesmos e do que nos é importante?

Nenhum comentário:

Postar um comentário