Um jovem relata que se sente “errado” quando não treina diariamente, como se seu valor pessoal estivesse diretamente atrelado ao número de séries que realiza na academia. Outra paciente diz que só consegue dormir após longos e intermináveis rituais de skincare, como se precisasse organizar a superfície da pele para tentar apaziguar algo caótico por dentro. Um terceiro descreve seu incômodo com o próprio tronco, dizendo que “parece que minha parte de cima não pertence ao meu resto”. O que emerge dessas falas não é apenas uma preocupação estética ou vaidade, mas uma tentativa de lidar, por vias concretas, com experiências emocionais ainda não simbolizadas.
É cada vez mais comum, na clínica, observarmos uma forma de sofrimento que não se expressa prioritariamente pela via do pensamento simbólico, mas sim pelo corpo – ou melhor, por um corpo que não se deixa representar como sujeito. Trata-se de pacientes que chegam ao consultório tomados por um mal-estar indefinido, atravessados por angústias difíceis de nomear, mas que se anunciam, muitas vezes, por meio de queixas ligadas ao corpo: seja pela busca exaustiva de moldá-lo, seja pelo desconforto persistente com ele, seja ainda pela sensação de fragmentação corporal.
É cada vez mais comum, na clínica, observarmos uma forma de sofrimento que não se expressa prioritariamente pela via do pensamento simbólico, mas sim pelo corpo – ou melhor, por um corpo que não se deixa representar como sujeito. Trata-se de pacientes que chegam ao consultório tomados por um mal-estar indefinido, atravessados por angústias difíceis de nomear, mas que se anunciam, muitas vezes, por meio de queixas ligadas ao corpo: seja pela busca exaustiva de moldá-lo, seja pelo desconforto persistente com ele, seja ainda pela sensação de fragmentação corporal.
O corpo, nesses casos, torna-se não apenas objeto de cuidado ou investimento, mas o principal veículo de expressão de estados mentais arcaicos. Investido como uma linguagem de urgência, ele grita o que a mente ainda não consegue pensar. Diante de uma identidade psíquica fragilmente constituída, o corpo passa a ser convocado como uma superfície onde se inscrevem traços de uma tentativa de ser alguém, de existir com forma, contorno e força.
Não é raro que essas pessoas se mostrem especialmente atraídas pelas sensações físicas e pelo impacto visual de suas transformações corporais, mas sintam grande dificuldade em associar essas mudanças a uma experiência subjetiva mais profunda. O que se vê é uma divisão entre corpo e mente. Nessas condições, o corpo musculoso, moldado com afinco ou a pele perfeita, pode adquirir a função de armadura contra um sentimento interno de desamparo. Uma carapaça onde a força ou perfeição aparente encobre a fragilidade estrutural.
Trata-se de um corpo que existe e atua, mas que não é sentido como morada psíquica. É habitado por sensações, mas não por um sujeito que as elabora. É um corpo em partes, desabitado, desconectado da mente e, por vezes, também da própria história. Um corpo vivido como estranho, como coisa, como objeto que se manipula, e não como expressão viva de um eu integrado.
Nesses momentos, o corpo pode se tornar palco de manifestações primitivas: dores, sintomas difusos, compulsões motoras ou regimes alimentares extremos. São tentativas de lidar com aquilo que não pôde ainda ser pensado. O desafio do trabalho analítico com esses pacientes é oferecer, no espaço da escuta, uma possibilidade de tradução simbólica das experiências corporais. Mais do que interpretar, trata-se de estar com, de sustentar uma presença que acolha o que não tem forma, e que, pouco a pouco, permita que o corpo deixe de ser apenas campo de batalha para tornar-se também continente de vida psíquica.
O analista, nesses casos, é chamado a funcionar como um espaço vivo, onde as experiências arcaicas possam ser recebidas, transformadas e simbolizadas. Um lugar onde, enfim, corpo e mente possam começar a se encontrar, não como partes isoladas, mas como expressão de uma mesma subjetividade em construção.
A clínica com esses pacientes nos lembra que, por trás da obsessão pela força, pela forma ou pela performance, muitas vezes há um apelo silencioso por reconhecimento, acolhimento e integração. Escutá-los é também escutar a dor de existir em pedaços – e oferecer, na escuta, a possibilidade de se tornar inteiro.