quinta-feira, 27 de março de 2025

Corpos fragmentados

 


Um jovem relata que se sente “errado” quando não treina diariamente, como se seu valor pessoal estivesse diretamente atrelado ao número de séries que realiza na academia. Outra paciente diz que só consegue dormir após longos e intermináveis rituais de skincare, como se precisasse organizar a superfície da pele para tentar apaziguar algo caótico por dentro. Um terceiro descreve seu incômodo com o próprio tronco, dizendo que “parece que minha parte de cima não pertence ao meu resto”. O que emerge dessas falas não é apenas uma preocupação estética ou vaidade, mas uma tentativa de lidar, por vias concretas, com experiências emocionais ainda não simbolizadas.

É cada vez mais comum, na clínica, observarmos uma forma de sofrimento que não se expressa prioritariamente pela via do pensamento simbólico, mas sim pelo corpo – ou melhor, por um corpo que não se deixa representar como sujeito. Trata-se de pacientes que chegam ao consultório tomados por um mal-estar indefinido, atravessados por angústias difíceis de nomear, mas que se anunciam, muitas vezes, por meio de queixas ligadas ao corpo: seja pela busca exaustiva de moldá-lo, seja pelo desconforto persistente com ele, seja ainda pela sensação de fragmentação corporal.

É cada vez mais comum, na clínica, observarmos uma forma de sofrimento que não se expressa prioritariamente pela via do pensamento simbólico, mas sim pelo corpo – ou melhor, por um corpo que não se deixa representar como sujeito. Trata-se de pacientes que chegam ao consultório tomados por um mal-estar indefinido, atravessados por angústias difíceis de nomear, mas que se anunciam, muitas vezes, por meio de queixas ligadas ao corpo: seja pela busca exaustiva de moldá-lo, seja pelo desconforto persistente com ele, seja ainda pela sensação de fragmentação corporal.

O corpo, nesses casos, torna-se não apenas objeto de cuidado ou investimento, mas o principal veículo de expressão de estados mentais arcaicos. Investido como uma linguagem de urgência, ele grita o que a mente ainda não consegue pensar. Diante de uma identidade psíquica fragilmente constituída, o corpo passa a ser convocado como uma superfície onde se inscrevem traços de uma tentativa de ser alguém, de existir com forma, contorno e força. 

Não é raro que essas pessoas se mostrem especialmente atraídas pelas sensações físicas e pelo impacto visual de suas transformações corporais, mas sintam grande dificuldade em associar essas mudanças a uma experiência subjetiva mais profunda. O que se vê é uma divisão entre corpo e mente. Nessas condições, o corpo musculoso, moldado com afinco ou a pele perfeita, pode adquirir a função de armadura contra um sentimento interno de desamparo. Uma carapaça onde a força ou perfeição aparente encobre a fragilidade estrutural.

Trata-se de um corpo que existe e atua, mas que não é sentido como morada psíquica. É habitado por sensações, mas não por um sujeito que as elabora. É um corpo em partes, desabitado, desconectado da mente e, por vezes, também da própria história. Um corpo vivido como estranho, como coisa, como objeto que se manipula, e não como expressão viva de um eu integrado.

Nesses momentos, o corpo pode se tornar palco de manifestações primitivas: dores, sintomas difusos, compulsões motoras ou regimes alimentares extremos. São tentativas de lidar com aquilo que não pôde ainda ser pensado.  O desafio do trabalho analítico com esses pacientes é oferecer, no espaço da escuta, uma possibilidade de tradução simbólica das experiências corporais. Mais do que interpretar, trata-se de estar com, de sustentar uma presença que acolha o que não tem forma, e que, pouco a pouco, permita que o corpo deixe de ser apenas campo de batalha para tornar-se também continente de vida psíquica.

O analista, nesses casos, é chamado a funcionar como um espaço vivo, onde as experiências arcaicas possam ser recebidas, transformadas e simbolizadas. Um lugar onde, enfim, corpo e mente possam começar a se encontrar, não como partes isoladas, mas como expressão de uma mesma subjetividade em construção.

A clínica com esses pacientes nos lembra que, por trás da obsessão pela força, pela forma ou pela performance, muitas vezes há um apelo silencioso por reconhecimento, acolhimento e integração. Escutá-los é também escutar a dor de existir em pedaços – e oferecer, na escuta, a possibilidade de se tornar inteiro.




quarta-feira, 7 de agosto de 2024

As armaduras que vestimos

 


O livro “O Cavaleiro Preso na Armadura”, de Robert Fisher, apresenta uma narrativa que, à primeira vista, pode parecer uma simples fábula infantil. No entanto, por trás de sua leveza aparente, reside uma profundidade psicológica sobre as complexidades da mente humana e suas armadilhas.

O cavaleiro, envolto em sua armadura, simboliza a construção de um self defensivo, erguido para proteger-se das vulnerabilidades e expectativas externas. Esta armadura representa as defesas psíquicas que todos nós erguemos ao longo da vida, um mecanismo de proteção que, ao mesmo tempo que nos preserva, nos isola. A armadura do cavaleiro, portanto, é uma metáfora para as barreiras que criamos em torno de nosso verdadeiro eu, na tentativa de manter uma imagem idealizada de nós mesmos.

Quando o cavaleiro decide iniciar sua jornada para remover a armadura, ele embarca em um processo análogo ao da análise psicanalítica. Este movimento implica um olhar profundo para dentro de si, confrontando as partes reprimidas e as fantasias que sustentam sua identidade idealizada. Para se livrar da armadura que o prende e não o permite sentir nada na vida, nem o toque de sua mulher e seu filho, é preciso abandonar as ilusões.

 A fala do rei: "A maioria de nós está aprisionada no interior de uma armadura" reflete a universalidade da experiência de alienação do verdadeiro self. A armadura, que inicialmente serve para proteger, transforma-se em uma prisão, aprisionando o indivíduo em uma identidade rígida e desconectada de sua essência. Este dilema é amplamente explorado na psicanálise, onde o processo terapêutico visa desvelar as defesas inconscientes que impedem o sujeito de viver de forma autêntica.

O dilema do cavaleiro – manter ou não sua armadura – é, na verdade, um dilema existencial. Escolher desfazer-se das defesas e encarar a vulnerabilidade é uma decisão que exige coragem e disposição para olhar a si próprio. Em termos psicanalíticos, é um convite ao encontro com o inconsciente, com os aspectos sombrios e reprimidos da mente. A jornada do cavaleiro é uma peregrinação para além das ilusões, rumo à integração psíquica.

Durante esta jornada, o cavaleiro enfrenta suas fragilidades, medos e inseguranças. Este confronto é indispensável para o crescimento psíquico e o caminho para a integração, passa necessariamente pela aceitação das partes desconhecidas e fragmentadas da mente. É neste confronto com o que há de mais assustador e desconhecido em si mesmo que o cavaleiro encontra a verdadeira coragem e ousadia, afastando-se das defesas ilusórias, sedutoras, mas aprisionadoras.

Ademais, o cavaleiro não trilha este caminho sozinho. Ele conta com a ajuda de figuras que o auxiliam e estas figuras funcionam como a "presença terapêutica" na análise, lembrando-nos de que, embora o trabalho analítico seja profundamente pessoal, ele não precisa ser solitário. A presença do analista, assim como as figuras de apoio na jornada do cavaleiro, oferece um espaço seguro para o sujeito reconstruir sua identidade.

A história do livro nos convoca a uma reflexão profunda sobre nossas próprias defesas. A jornada do cavaleiro é uma alegoria rica que ilustra a importância da coragem para enfrentar o desconhecido e da necessidade de desmantelar as ilusões que nos afastam de nossa verdade mais profunda. Ao final, a verdade, mais poderosa que a espada, emerge como a grande revelação que liberta o cavaleiro – e a todos nós – da prisão de nossas próprias armaduras.




domingo, 21 de julho de 2024

Sobre o vício da pornografia

 



A intensa disseminação da pornografia é um fenômeno que revela muito sobre as dinâmicas do desejo e da pulsão. Vivemos numa era onde o acesso à pornografia é quase instantâneo e ilimitado, com consequências profundas no psiquismo, especialmente entre os jovens, que estão em fases formativas de seu desenvolvimento psicossexual.

Do ponto de vista psicanalítico, a compulsão pela pornografia pode ser vista como uma manifestação de repetição traumática. Freud, em suas investigações sobre o trauma, destacou a compulsão à repetição como um mecanismo pelo qual o sujeito tenta dominar uma experiência dolorosa ou incompreensível. Na pornografia, essa repetição se manifesta pela busca incessante de novos estímulos, cada vez mais intensos, numa tentativa de preencher um vazio interno ou de evitar o confronto com uma falta.

A pornografia, com suas representações idealizadas e muitas vezes desumanizadas do ato sexual, cria uma dissociação entre a realidade e o que se imagina que é real. A pornografia oferece uma satisfação imediata, mas efêmera, que não consegue sustentar uma verdade de maneira significativa. O indivíduo, então, se vê preso numa repetição incessante, buscando incessantemente a excitação momentânea sem nunca alcançar uma satisfação autêntica.

Os jovens, por estarem em fases cruciais de desenvolvimento, são particularmente vulneráveis a essas dinâmicas. A exposição precoce à pornografia pode distorcer suas percepções sobre a sexualidade e o relacionamento. Ao invés de explorarem e desenvolverem uma sexualidade integrada e saudável, muitos jovens acabam internalizando padrões de objetificação e de performance que não correspondem à realidade de suas experiências afetivas.

Ademais, a pornografia na internet é um fenômeno que se alimenta de uma estrutura de gratificação instantânea que caracteriza a era digital. A disponibilidade imediata de estímulos visuais e a facilidade de acesso criam um ambiente propício para o desenvolvimento de comportamentos aditivos. A compulsão pelo consumo de pornografia se assemelha a outras formas de vício, onde o sujeito busca um alívio temporário de suas ansiedades e angústias, apenas para se ver preso numa espiral de dependência e frustração. Só para se ter uma ideia o conteúdo que está mais presente na internet é a pornografia. Alguns calculam que 75% do trafego na web está ligado à pornografia.

É essencial ajudar o sujeito a reconhecer e a confrontar a falta que tenta preencher através do consumo compulsivo de pornografia. Através da análise, o sujeito pode começar a reintegrar seu desejo de maneira mais saudável, construindo uma relação mais autêntica e menos alienada com sua própria sexualidade. Isso não se trata de moralismo contra a pornografia, de dizer o que é certo ou errado, mas de saúde mental.

A disseminação da pornografia na internet e o vício que dela resulta são sintomas de uma sociedade e de pessoas que valorizam a gratificação instantânea e a superficialidade das relações. O desafio psicanalítico é ajudar  a navegar essas águas turbulentas, oferecendo um espaço de reflexão e de construção de uma sexualidade mais integrada e menos dependente de estímulos externos. A cura, no sentido psicanalítico, passa pela reconexão com o próprio desejo e pela capacidade de sustentar a falta sem sucumbir à compulsão.


domingo, 7 de julho de 2024

A Felicidade é a Ausência da Busca pela Felicidade

 

                                                   Le Moulin de La Gallete – 1876



A felicidade, em sua essência, pode ser concebida como um estado de ser que emerge naturalmente quando o sujeito se despoja da incessante busca por ela. Tal concepção pode ser ilustrada pela máxima de Lao Tsé: "Quando você deixa de procurar, você encontra". Essa ideia ressoa profundamente no campo psicanalítico, onde a busca incessante pela felicidade pode ser vista como aquilo que a impede de existir.

 A felicidade, enquanto conceito, frequentemente se coloca como uma promessa de completude e satisfação plena. No entanto, essa busca por um estado idealizado muitas vezes se revela uma miragem, uma construção ilusória que sustenta a angústia e o desassossego. Na perspectiva psicanalítica, a busca incessante pela felicidade pode ser entendida como uma forma de resistência ao confronto com a realidade e com os próprios limites da condição humana.

Freud, em seus escritos, postula que a vida psíquica é governada pelo princípio do prazer, que busca evitar o desprazer e alcançar a satisfação. Contudo, essa busca é marcada por uma mistura de frustração e gratificação, onde o sujeito está continuamente movido por desejos que, uma vez satisfeitos, logo são substituídos por outros. Assim, a felicidade como um estado permanente torna-se uma impossibilidade, uma vez que o desejo é estruturalmente insaciável.

Lembro-me de quando eu era uma criança pequena e via o pôr do sol no horizonte, eu acreditava que existia ali uma espécie de abismo por onde o sol ‘caía’ e se escondia. Pedia a minha mãe para me levar lá para eu poder ver o sol ‘descendo’ por esse abismo. Todos davam risada e eu não entendia por que, mas só depois vim a compreender que por mais que eu chegasse lá no horizonte sempre haveria outro horizonte. Os horizontes não terminam, sempre abrindo a novos cenários, de modo que não teria como eu chegar na beira do abismo que eu supunha para ver o sol ‘sumindo’. A busca pela felicidade pode ser, assim, uma tentativa de alcançar um gozo absoluto, mas essa tentativa inevitavelmente conduz a uma impossibilidade de tal realização.

É nesse contexto que a felicidade pode ser entendida como a ausência da busca por ela. Quando o sujeito abandona a ilusão de um estado de felicidade absoluta e permanente, ele se abre para uma experiência de ser mais autêntica, onde a aceitação das limitações e imperfeições da vida permite um estado de serenidade e bem-estar. A felicidade, portanto, não é um objeto a ser conquistado, mas um estado de ser que emerge quando o sujeito se reconcilia com a incompletude e a transitoriedade da existência. 

Winnicott, psicanalista inglês, oferece uma perspectiva valiosa ao considerar o brincar como uma atividade que permite ao sujeito experimentar a vida de forma criativa e plena. No espaço potencial do brincar, o indivíduo pode vivenciar momentos de felicidade genuína, não porque está em busca dela, mas porque está imerso na experiência do presente, no fluxo espontâneo da vida psíquica.

Em resumo, a felicidade, na visão psicanalítica, pode ser alcançada paradoxalmente pela renúncia à sua busca incessante. É na aceitação da imperfeição, na reconciliação com os próprios desejos e na capacidade de viver o momento presente que o sujeito pode encontrar um estado de bem-estar autêntico. A felicidade, assim, deixa de ser um fim a ser alcançado e se torna uma consequência natural de um modo de ser mais genuíno e integrado.