segunda-feira, 21 de março de 2022

A diferença entre saber e perceber

 


Fala-se muito, atualmente, sobre ecologia, proteger o meio-ambiente, efeitos climáticos, mas é curioso notar que todos esses temas são falados como se se tratasse de algo externo, algo lá fora, mas na verdade somos parte disso tudo. Não devemos cuidar da natureza apenas porque ela é boa e que dependemos dela, porém a verdade é que somos parte da natureza, ou seja, somos mais uma engrenagem dentro de tanta complexidade que é a natureza. Cuidar dela, do meio-ambiente, etc., é cuidar de nós mesmos. Todavia, isso não é sentido assim.

            Há inúmeras coisas que a gente sabe, mas que não percebemos. Há uma diferença. Sabemos que somos parte da natureza, mas não quer dizer que necessariamente percebemos isso. Veja uma exemplo bem simples: pergunte a qualquer fumante se ele sabe que o hábito de fumar faz mal a sua saúde. Ele prontamente e sem titubear responderá que sabe, sim, que fumar é prejudicial, mas mesmo assim ele fuma. Por que? Porque o que sabemos nem sempre coincide com o que percebemos. Caso o sujeito fumante em questão realmente percebesse os danos e os ricos de fumar, ele pararia.

            Sabemos muitas coisas nesse mundo, só que a grande maior parte do que sabemos não implica que obrigatoriamente nos damos conta. Dar-se conta de algo envolve toda nossa consciência enquanto saber algo requer apenas a intelectualidade, o pensamento lógico-racional. E ao contrário do que muitos acreditam o ser humano não é um animal tão racional assim. Até temos racionalidade e podemos desenvolver grande pensamentos lógicos, mas de fato agimos muito pouco racionalmente quando vivemos.

            Quando nossa consciência está envolvida a gente consegue pensar com muito mais clareza e não ficamos tão submetidos aos nossos mecanismos de defesa. Em outras palavras, ficamos mais livres para realmente ver as coisas, travar contato com a realidade e não procuramos tapar o sol com a peneira. No entanto, quando é tão somente nossa intelectualidade que está envolvida na matriz de nossas atitudes ficamos cheio de arrogância, cheio de defesas que nos impossibilitam ter contato com a realidade e ver de verdade. Acabamos dividindo tudo o que experimentamos: “é a natureza lá fora, é o meio-ambiente e não mais nós mesmos”. Cria-se uma desconexão entre o que sabemos e o que somos capazes de perceber.

            Uma coisa que venho cada vez mais notando tanto no caminhar da vida quanto no meu trabalho clínico é que é apenas quando alguém percebe a si mesmo e o que vem fazendo consigo é que torna-se capaz de realmente mudar, de transformar como vem vivendo. Ao dar-se conta de que o que faz consigo está levando à sofrimentos desnecessários uma pessoa decide comprometer-se efetivamente com uma transformação. Quem permanece unicamente no terreno da intelectualidade vai saber toneladas de ideias, mas vai se sentir separado do que sabe e com certeza esperará que as mudanças sejam feitas lá fora, pelos outros. Ela mesma nada tem a ver com isso. Se insistirmos achar que a natureza está lá e nós aqui corremos sérios riscos.


domingo, 13 de março de 2022

O que é viver a vida ao máximo?

 


       Queremos viver a vida intensamente e a frase ‘viver a vida ao máximo” se faz atualmente muito em voga. O problema é que essa sentença é muito mal interpretada e entende-se por ela uma coisa bem diferente do que ela realmente significa. Aliados por movimentos como o YOLO (you only live once) sigla em inglês para ‘você só vive uma vez’ ou Carpe diem, latim para ‘aproveitar o dia’ muitas pessoas acreditam que viver a vida ao máximo é o mesmo que farrear.

Farrear, festejar como se não houvesse amanhã é a forma que muitas pessoas compreendem que a vida tem que ser vivida. Nosso tempo de vida é na verdade um piscar de olhos. Quando vemos, sentimos que a vida passou, mas somos nós que passamos pela vida. É rápida essa passagem. De fato, temos um prazo de validade e chegará uma hora que ‘passaremos do ponto’.

Quando nos damos conta de que não temos todo o tempo do mundo notamos a necessidade de aproveitar bem o tempo que nos é disponível e que precisamos saber viver bem. No entanto, o que seria vive bem? O que seria aproveitar a vida e o tempo que dispomos? Como podemos, então, viver a vida em sua inteireza?

É comum ouvir pessoas de todas as camadas sociais e educação dizer que aproveitar a vida é fazer o que se quer na hora que se quer. Como se a vida tivesse que ser uma constante realização de desejos ou gratificações. Outras afirmam que só conseguem desfrutar a vida se se divertirem loucamente ou se beberem até cair. É triste notar que muitos saem de noite e dizem que se não voltarem tropeçando de tão bêbados ou se não tiverem uma monstruosa ressaca no dia seguinte a noite não foi boa. Beber até não poder mais a ponto de fazer mal não é aproveitar a vida. 

Talvez essas ações estejam mais a serviço de não aproveitar a vida de fato, de se enganar. Nos enganamos acreditando que tais atitudes é gozar a vida plenamente, porém são prazeres sensoriais muito limitados e, em alguns casos, até mesmo insalubres. São meras distrações enquanto a vida passa.

O que mais sabemos nesse mundo é como nos distrair e não como viver realmente. Distrações sensoriais apenas enganam enquanto algo mais importante ocorre. Os ilusionistas sabem bem disso. Eles distraem suas plateias enquanto o truque está realmente acontecendo fora de vista. Só que viver se distraindo sensorialmente não nos permite dar conta que a vida está passando ao lado e sendo desperdiçada.

Viver a vida ao máximo tem mais a ver com descobrir as dimensões que podemos alcançar, a pessoa que podemos vir a ser, o quanto de vida e experiências humanas podemos absorver. É muito mais amplo, muito mais vasto. Não é só se distrair, mas encontrar e expandir quem somos: nossos sonhos, anseios e possibilidades. É se reinventar e ser autor da própria vida. Poético tudo isso, mas como cada um vai realizar isso? Aí cabe a cada um inventar e construir o próprio caminho, se permitir ver além do próprio nariz. É abandonar a miopia e lançar a visão mais longe. Só assim há a chance de vivermos a vida ao máximo.


Freud e os horrores da guerra

 

                           Crédito da foto: blog Razão Inadequada


Em 1930 após a Primeira Guerra e prestes a estourar a Segunda Guerra, Freud, criador da psicanálise, escreveu um texto chamado Mal-estar na civilização. Neste trabalho ele mostra a batalha que é para o ser humano lidar com sua vida pulsional, já que muitos impulsos têm uma natureza violenta. O processo civilizatório não consegue inibir eficientemente todos os perigos que existem dentro de nós. Há em toda pessoa uma pulsão destrutiva e Freud foi bem direto quando disse que os homens não encontrariam nenhuma dificuldade em exterminar uns aos outros. Um texto de 90 anos atrás, mas mais válido que nunca principalmente sob esses tempos atuais de invasão russa na Ucrânia.

A guerra sempre fez parte da história e faz parte. Não é algo localizado apenas nos livros históricos sobre anos passados. A disposição para a guerra é atual porque está dentro de nós, é inerente à nossa natureza. Freud apontava que as pessoas percebiam essa tendência à destruição e que isso criava uma recorrente angústia e inquietação pelo medo de irmos às vias de fato e termos sucesso na exterminação total. A civilização, a sociedade precisa constantemente estar “ajustando” os níveis de violência e quando esse ajuste falha ou não é suficiente o lado mais horroroso que carregamos se faz presente.

Na arte o demônio ou os demônios são representados como bestas monstruosas, hibrido de animal e humano. Pior que qualquer besta animal e pior que qualquer humano dito como tal essas representações são, na verdade, o que existe dentro de nós e o que nos assusta. É só olharmos para trás e verificar que muitos povos considerados civilizados e cultos foram capazes das mais atrozes a aterrorizadoras ações para com outras pessoas. A tão aclamada racionalidade do ser humano que faz com que muitos se achem a última bolacha no universo inteiro vai para o ralo quando os impulsos internos mais bestiais surgem à tona e dominam a mente. Nem precisamos ir tão longe nos massacres e genocídios pela História, mas basta notar que se a polícia deixasse de existir a barbárie tomaria conta de todos e o que valeria seria sem dúvida a lei do mais forte.

Nessa guerra atual que se trava entre Ucrânia e Rússia podemos, infelizmente, presenciar esse lado tão terrível em nossa natureza. A violência, barbárie, selvageria são frutos de uma mente que não se desenvolveu e não criou recursos internos para lidar com esse impulsos. Os ataques à capacidade de pensar predomina e tudo o mais que existir é posto de lado. Razão se perde fácil, mais do que gostaríamos de admitir.

Quando rompemos com a racionalidade a violência se torna a única forma para se lidar com o mundo e tudo o que for diferente é visto como o inimigo; tudo o que trouxer frustração passa a ser violentamente reprovado e atacado. Todos esses eventos podem acontecer individualmente ou no coletivo. No indivíduo há um louco que comete violência, no coletivo há a guerra.

Temos que cuidar para que a besta que há em nós não predomine e nos faça bárbaros. Só mesmo uma melhora significativa em como lidamos com a suade mental pode rarear guerras, conflitos, injustiças, etc.



terça-feira, 1 de março de 2022

A complexidade humana

 

Foto de Dhwani Jalan em Unsplash

A cultura hinduísta é milenar e muitos dos seus templos remanescentes são verdadeiras obras de arte da arquitetura. Antigos, eles nos assombram com a capacidade que tinham as pessoas de realizar obras tão complexas. Uma coisa que também chama a atenção em muitos desses templos é que por fora eles eram todos decorados com figuras em alto-relevo de homens e mulheres nas mais diversas práticas sexuais. Havia homens com mulheres, mulheres com outras mulheres e homens com homens. Quando os britânicos chegaram à Índia séculos atrás ficaram escandalizados ao notarem essas decorações que consideravam escandalosas em lugares que eram tidos como sagrados. Os hindus acabaram sendo vistos como pornográficos.

            Mas o que para os britânicos e nós aqui do ocidente e desse tempo atual encaramos como pornografia era visto de maneira bem diversa antigamente nos templos hindus. Até mesmo a noção de pornografia como nós a entendemos não existia. O sexo era tido como algo natural e as atividades sexuais eram vistas como algo inerente e necessário à biologia.

            Por fora os templos eram todos repletos de imagens e pessoas nuas e em atividades sexuais explícitas. Isso tudo diante dos olhos de homens, mulheres e crianças que por lá passavam. Porém, quando se entrava nos templos essas imagens eram deixadas para trás e surgiam imagens dos inúmeros deuses que fazem parte da religião e cultura hinduísta. E quanto mais no interior do templo se ia mais diminuíam as imagens até ficar imensas salas vazias. Toda essa disposição dos templos tinha um sentido, não era algo à toa.

            Para os antigos hindus a biologia, e a sexualidade faz parte da biologia, era algo natural e que precisava ser aceito. Temos um corpo biológico, somos pedaços da natureza. Negar isso é negar e tornar feio nossas origens. Estamos aqui porque nosso pai e mãe se envolveram numa atividade sexual. A natureza e biologia assim nos desenhou. E a sexualidade vai além da biologia em si. Ela se torna uma atividade que é também humana porque adentra as várias possibilidades que temos de nos organizar. Daí que nos templos haviam representações de cenas homossexuais. Isso também não era negado e nem tido como errado. Somos biologia e somos também uma mente. Como se vê, vai aumentando a complexidade do que se é ser humano.

            E quanto mais dentro se vai nos templos, mais outras necessidades vai surgindo no caminho do ser humano. Podemos viver a vida só na dimensão sensorial, por exemplo. Isso implica em ficarmos apenas buscando o prazer, seja ele qual for. Podemos ficar presos da sensorialidade já que esta requer simplesmente em satisfazer o corpo. Aí se inclui a sexualidade em si, o culto ao corpo, às satisfações estéticas, à comida e bebida, etc. Não há nada errado com essa dimensão sensorial e precisamos também alimentá-la, mas nos tornamos limitados se apenas ficarmos nela. Não vamos além em nossas possibilidades por assim dizer.

            Isso que a arquitetura dos templos nos convida: a aceitarmos a dimensão sensorial, mas também a entrar e conhecer outras dimensões. Dimensões que nos permitiriam refletir e descobrir quem somos e quem podemos vir a ser. Ao adentrar mais no interior mais espaços dispomos para construirmos a pessoa que podemos e queremos ser. Nessa interiorização vamos nos enriquecendo e nos humanizando. Vamos aumentando cada vez mais nossas possibilidades e expandindo nossos horizontes. Os deuses podem então nascer. Os antigos hindus nos convidavam a ser deuses, não como seres onipotentes, mas como seres cheios de perspectivas e capacidades.