segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Uma tragédia



        Uma das maiores tragédias que pode nos acontecer é quando contamos mentiras para nós mesmos. Isso é muito mais comum do que se imagina e todo mundo, em maior ou menor grau, conta mentiras para si próprio. Ao contar mentiras não lidamos com a realidade, enquanto que a vida só pode acontecer sempre com base na realidade.
        Por que contamos tantas mentiras para nós mesmos? A mentira é prazerosa e não exige compromisso com nenhuma realidade. Com a mentira podemos nos enganar e por mais incrível que pareça viver sob enganos é algo que gera prazer. Com a mentira podemos contar a história que for, a justificativa mais mequetrefe que existir e achar que se trata da realidade.         Triste, porém nada incomum as coisas serem assim.
Um exemplo corriqueiro que acontece frequentemente é quando uma pessoa precisa fazer algo, mas encontra todas as desculpas do mundo para não fazê-lo. Essas desculpas são mentiras que vamos contando e que tomamos como verdades. A mentira está sempre a serviço de uma não mudança, de uma não transformação, mantendo tudo como sempre esteve mesmo que não seja bom.
        Sabe quando uma pessoa diz que não pode se exercitar por isso ou aquilo? Bom, na maior parte das vezes essas “razões” para não se fazer algo que se necessita são mentiras tomadas como verdades. E se a pessoa que as conta acredita nelas e fica nelas vai criando toda uma falsidade em sua vida, tornando cada vez mais difícil encarar a realidade. Nunca faltam desculpas, nunca falta criatividade para arranjar as mais variadas justificativas para o que quer que seja.
        No entanto, se pararmos de contar mentiras temos apenas um caminho a seguir, que é em frente, só que este caminho sempre leva ao novo e desconhecido e sempre exige de nós. A mentira só leva ao conhecido e já bem estabelecido; a verdade sempre leva ao desconhecido. Não é à toa que a verdade seja sempre mais assustadora e gere inúmeras resistências.
        Podemos ver isso muito claramente num processo de análise. O paciente que procura por uma análise sofre por algo, carrega um incômodo que trava a vida ou a faz ficar insuportável. Ao chegar na análise o analista escuta seu paciente, mas não o deixa numa posição passiva, e sim, aponta que o paciente tem responsabilidade pela situação em que se encontra e isso
geralmente levanta muitas resistências. O que faz muita gente correr da própria análise é que se faz necessário encarar determinadas verdades de suas vidas que antes não eram encaradas, mas encobertas com mentiras. 
        Ao mentir sobre a posição em que se coloca, uma pessoa pode ficar como vítima e não precisa fazer nada, pode apenas “sofrer”. Torna-se uma vítima do destino. Isso é até prazeroso. Agora, sair dessa posição, se responsabilizar pelo lugar onde vai se colocar daqui para frente demanda mudar, transformar como se vinha vivendo. Implica sair da posição de vítima para passar a ser alguém que começa a se
responsabilizar pela própria história. Só que quando nos libertamos das mentiras não sabemos o que a verdade abrirá à nossa frente, não sabemos quem nos tornaremos. Por medo do desconhecido, do que pode ser descoberto, muitas pessoas se acomodam nas mentiras que contam, sem parar, sobre si próprias. É uma tragédia.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Antes de Marte, a mente!


    
    ​É entusiasmante acompanhar as notícias sobre o desenvolvimento da exploração espacial. A tecnologia cada vez mais avançada permite coisas que muito pouco tempo atrás seria impossível sequer sonhar. Não deixa de ser bonito que esse lado explorador e inquieto do ser humano possa nos levar até mesmo a estabelecer uma colônia no planeta Marte. Nesse exato momento, bilhões e bilhões de dólares e os melhores cientistas estão sendo investidos em empreitadas desse quilate. Não há dúvida que a exploração espacial já começou e que ficará cada vez mais forte. 
        Essa vontade de explorar, se conhecer, de aceitar e vencer desafios é uma faceta do ser humano que traz inúmeras consequências no desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da ocupação de vários lugares seja aqui na Terra ou já sonhando com outros lugares. É até admirável toda essa força e empenho que são empregados. No entanto, esse lado explorador louvável é algo que se situa muito para o lado externo, está sempre voltado para fora, para as coisas concretas que encontramos externamente. Assim como podemos explorar o planeta e até o espaço sideral, podemos também explorar nossos mundos internos, voltarmos a atenção para nossa própria mente, que é algo muito pouco conhecido ainda.
        Nada contra aquilo que é externo, afinal também precisamos e nos relacionamos com tudo aquilo que está fora de nós, mas a exploração para conhecer o desconhecido não deveria se ater apenas ao mundo externo. Quando fica apenas voltado para um lado ficamos meio que “aleijados”, sem desenvolver outros lados igualmente importantes. Quem aqui já não viu em alguma academia aquele sujeito que malha e trabalha sempre os músculos superiores do corpo enquanto não dedica nada aos músculos inferiores? Ficam com o peito, costas e braços sarados enquanto as pernas ficam raquíticas. Na verdade, fica desproporcional e isso não é só uma questão estética, mas de equilíbrio e saúde. Os membros inferiores ficam fracos e podem se machucar por não terem sido trabalhados o suficiente. Isso vem acontecendo conosco no que diz respeito ao desenvolvimento da mente.
      Estamos desproporcionais. A tecnologia, o avanço da ciência, está bastante desenvolvida para o externo. Até Marte o ser humano está considerando dominar, mas a própria mente fica raquítica, com pouco conhecimento e desenvolvimento. Entretanto, esse desequilíbrio é danoso porque se não podemos contar com uma mente que nos sustente podemos cair nos mais variados enganos e situações desnecessárias. É fato que a maior parte dos nossos sofrimentos são causados por nós mesmos e assim é porque nos conhecemos pouco e nos conduzimos de maneira nada eficiente.
        Do que adianta ganhar e explorar o mundo inteiro e se perder? Quem não se conhece não tem nem mesmo capacidade de aproveitar o que conquista. Isso tudo só vai gerando um sentimento de vazio cada vez maior e não é se voltando para fora que vamos encontrar o que precisamos, mas apenas se voltando para dentro. Infelizmente, o tempo da exploração mental ainda está só engatinhando.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O que falta para vivermos bem?



          Hoje temos tecnologia de ponta para solucionar se não todos, pelo menos quase todos os problemas do mundo que enfrentamos. Fome, injustiça, pobreza, doenças, poluição, destruição dos recursos naturais, etc. Todos esses problemas que tanto nos atormentam e prejudicam não são realmente problemas, já que poderiam ser solucionados se todos os países colocassem em prática a tecnologia existente e o conhecimento já acumulado. Não é verdade? Temos conhecimento e meios de sobra para que essas questões não sejam propriamente adversidades incontornáveis. Essa é a nossa realidade.
          Contudo, com todos os instrumentos que temos hoje em dia, vivemos mal, vivemos aquém do que poderíamos e deveríamos. Ficamos empacados e sofrendo com obstáculos que não necessariamente são realmente obstáculos. Então aqui vem a pergunta sobre a qual vale muito a pena refletir. Se temos recursos e instrumentos para amainar grande parte dos problemas do mundo, o que está faltando? Por que não estamos vivendo bem? Que instrumento ou recurso está em falta que não permite que aproveitemos tudo o que já temos?
          Pensando de uma forma despretensiosa eu diria que o que falta é consciência. Enquanto a maior parte das pessoas não desenvolver uma consciência nada mudará nesse planeta, por melhores que sejam as tecnologias criadas. A tecnologia principal, o recurso mais valioso e importante que existe, nossa consciência, não é algo presente na vida das pessoas. Muito pelo contrário, é algo que está em falta. Falta consciência.
          Por consciência não me refiro ao senso comum que faz uso do moralismo que diz o que é certo ou errado; isso é bom e aquilo é mau. Esse vértice moral de nada ajuda. Chega, na verdade, a atrapalhar porque só causa divisões e criações de grupos que se acham melhores que outros. Aí já se tem a receita para desentendimentos e brigas sem fim. A consciência a que me refiro tem a ver com o sentimento e o conhecimento que nos permite viver e experimentar nosso mundo interno. Quando vivemos e experimentamos nosso mundo interno temos a chance de conhecê-lo e aprender a cuidar dele. Quando cuidamos do nosso mundo interno só vamos querer aquilo que é bom, só vamos oferecer aquilo que nos é favorável, que nos permite ser melhores. Em outras palavras, podemos crescer e quem cresce não fica mais movido ou pelo menos não tão movido por mesquinharias. Quando realmente nos cuidamos vamos naturalmente cuidar do que está fora. O que está dentro e fora ficam importantes e passam a ser cuidados devidamente.
          Entretanto, desenvolver consciência é algo trabalhoso e oneroso. Ela não vem fácil nem pode ser comprada no mercado. É um trabalho individual, mas sem consciência nunca vamos viver bem, sempre ficaremos meio aleijados. Isso é que é ser aleijado: não desenvolver o melhor recurso que temos nessa vida que é nós mesmos. Quem se cuida jamais descuidaria do que está em volta, jamais fecharia os olhos frente a todo o sofrimento que insistimos em criar. Quem tem consciência aprende a cuidar de dentro de si e estende esse mesmo cuidado fora também. Desenvolver essa “tecnologia”, a consciência, é o que mais faz falta nesse mundo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Análise ou consolo?


            Análise e consolo são coisas bem diferentes. Imagine a seguinte imagem: um fazendeiro tem uma terra que pode ser usada para o cultivo de uma dada cultura. Ele pode chegar e jogar as sementes do que quer plantar. Isso certamente não será suficiente para que a plantação cresça forte. Então, o fazendeiro pode chegar lá na plantação e oferecer palavras de consolo à terra. Bom, a plantação não vai se desenvolver. O que ele pode é trabalhar a terra, ver o que falta de nutrientes, acertar isso ou aquilo que permita que a semente que ele plantar possa encontrar um terreno fértil para o crescimento. Em outras palavras, precisou-se buscar uma transformação que requer um trabalho sério. 

        É extremamente confundido o processo da análise com o simples consolo. Muitas pessoas acreditam que os dois sejam algo como sinônimos, ou seja, com o mesmo significado. Nos dicionários consolo tem o significado de alívio, satisfação e prazer. Em algumas regiões do Brasil, por exemplo, consolo tem o mesmo sentido que chupeta, mais uma vez evidenciando que está na dimensão do prazer e alívio das angústias. Então não é à toa que muitos confundem o ato de consolar com o ato de analisar.

          Numa análise espera-se que o analisando seja aliviado de suas dores, que o paciente encontre nas palavras de um analista algo que o console. Entretanto, não é isso o que ocorre, mas algo de natureza distinta e bem mais interessante. Não cabe ao psicanalista ou psicoterapeuta consolar seu paciente. Infelizmente, isso vem acontecendo com muita frequência, mas se o espaço analítico/terapêutico é usado dessa maneira fica uma distorção que transforma esse espaço, que pode ser tão rico e útil, numa coisa muito empobrecida. 
            Esse espaço pode ser justamente aquele que permite o crescimento, a expansão e
um melhor conhecimento de si mesmo. Algo que enriquece o indivíduo e o permite desenvolver seus próprios recursos para viver a vida de maneira mais eficiente e prazerosa. Já o consolo é outra coisa, bem diferente e bem mais pobre.
          Quando uma pessoa está angustiada imagina-se que o que ela mais precise seja de um consolo que a alivie. Porém, isso é muito estéril, já que não leva a nenhuma transformação. Consolar pode ser útil dentro de alguns contextos, mas nunca dentro de um espaço analítico/terapêutico. Aliviar uma angústia não é o mesmo que pensá-la e elaborá-la. Esses últimos é que deveriam ser os objetivos quando alguém entra num processo analítico.
Muitos pacientes começam um tratamento e rapidamente param porque, em muitos casos procuravam, na verdade, um consolo, e não um trabalho mais eficaz. Entrar em uma análise requer muito trabalho do paciente para que ele possa aprender a usar a própria mente e pensar a própria vida. 
         Transformar-se é um processo complexo que demanda abrir mão de funcionamentos e crenças antigos para abrir espaços às elaborações novas e muito mais férteis. E alguém entrar em contato consigo mesmo é sempre algo impactante, que exige uma boa dose de coragem e força de vontade. Como se pode ver nada tem a ver com consolo, mas com trabalho duro!